São Paulo, terça-feira, 25 de setembro de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Gente viva é outra coisa

Eles precisam confundir mundos, trocar lugares de lugar, transformar guaraná em chope, papel em dinheiro

É UMA raça. Seu maior atrativo transcende a estética e as superfícies, e pode ser sentido mesmo nos mais simples da linhagem. Não são necessariamente bonitos, mas também não se sabe de algum que não circule por aí com uma aura que com freqüência é apontada como beleza, ainda que em alguns casos seja chamada de não-convencional.
Cabelos fora do lugar, certo desalinho nas roupas, uma cicatriz em quelóide: nada parece repelente neles. Não precisam de moda, carros, celulares que tiram fotos e tocam músicas, de internet nem de tapinhas nas costas.
Sem essas coisas não se sentem inseguros; com elas, não ficam nem um pouco melhores do que já são. Quanto mais perto deles chegamos, fascinados, curiosos, mais força eles ganham.
Não consigo apanhá-los. Mas sinto que, perto de qualquer um da espécie, fico mais forte. E quando por acaso passo algum tempo sem ter contato com eles, as coisas desbotam. Existem no Rio, em São Paulo, pelo Brasil.
Quando saem de cena, algumas pessoas se sentem aliviadas (ao contrário de mim) como se nada mais de errado pudesse acontecer outra vez nas suas vidinhas.
Eles podem ser vistos como erro. Mas, depois de muito tempo sem eles, seu retrato é retirado de uma caixa para servir de comparação com as pessoas comuns. A diferença é gritante.
Falando desse jeito, parecem gente ruim, os da raça. E são. A crueldade deles é a que costumam atribuir aos gatos seus detratores; intrínseca a um carinho.
Gato chega lerdo perto do sofá e esfrega a cabeça na mão desocupada do jornal. Deixa o dono sentir o pêlo gostoso por pouco tempo, dá-lhe uma mordiscada na mão e vai comer passarinho no quintal, de preferência filhote, que cabe inteiro na boca de uma vez.
O animal sempre parece saber alguma coisa que a gente não sabe. Se for blefe, o que ele sabe então é que somos idiotas, pois acreditamos que sabem alguma coisa além do que há para saber. Acreditamos sim, por isso olhamos tanto para eles, pros nossos animais. Esperando a comunicabilidade impossível.
Voltando a eles, à raça, encontram você ao acaso e o impacto de sua chegada é maior. Pode ser de madrugada, numa lanchonete ordinária, mastigando palavras que te fazem esquecer o cheiro de hambúrguer e fritura.
Respirar não lhes basta. Precisam confundir mundos, trocar lugares de lugar, colocar a água do mar no calçadão, transformar guaraná em chope, papel em dinheiro, zumbis, criaturas semimortas, em pessoas com alguma vontade de sair de casa e rir um pouco.
A linhagem é rara. Mas não tão rara que não se possa vê-los tomando o metrô no largo do Machado, saltando em algum ponto de Copacabana, pegando telefones, fazendo ligações, marcando desencontros, partindo, deixando uma fila sem fim de cabeças que não entendem. Que não podem esquecê-los simplesmente porque eles, os da raça, estão vivos demais.


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