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CECILIA GIANNETTI
Gente viva é outra coisa
Eles precisam confundir mundos, trocar lugares de lugar, transformar guaraná em chope, papel em dinheiro
É UMA raça. Seu maior atrativo
transcende a estética e as superfícies, e pode ser sentido
mesmo nos mais simples da linhagem. Não são necessariamente bonitos, mas também não se sabe de algum que não circule por aí com uma
aura que com freqüência é apontada
como beleza, ainda que em alguns
casos seja chamada de não-convencional.
Cabelos fora do lugar, certo desalinho nas roupas, uma cicatriz em
quelóide: nada parece repelente neles. Não precisam de moda, carros,
celulares que tiram fotos e tocam
músicas, de internet nem de tapinhas nas costas.
Sem essas coisas não se sentem inseguros; com elas, não ficam nem
um pouco melhores do que já são.
Quanto mais perto deles chegamos,
fascinados, curiosos, mais força eles
ganham.
Não consigo apanhá-los. Mas sinto que, perto de qualquer um da espécie, fico mais forte. E quando por
acaso passo algum tempo sem ter
contato com eles, as coisas desbotam. Existem no Rio, em São Paulo,
pelo Brasil.
Quando saem de cena, algumas
pessoas se sentem aliviadas (ao contrário de mim) como se nada mais
de errado pudesse acontecer outra
vez nas suas vidinhas.
Eles podem ser vistos como erro.
Mas, depois de muito tempo sem
eles, seu retrato é retirado de uma
caixa para servir de comparação
com as pessoas comuns. A diferença
é gritante.
Falando desse jeito, parecem gente ruim, os da raça. E são. A crueldade deles é a que costumam atribuir
aos gatos seus detratores; intrínseca
a um carinho.
Gato chega lerdo perto do sofá e
esfrega a cabeça na mão desocupada
do jornal. Deixa o dono sentir o pêlo
gostoso por pouco tempo, dá-lhe
uma mordiscada na mão e vai comer
passarinho no quintal, de preferência filhote, que cabe inteiro na boca
de uma vez.
O animal sempre parece saber alguma coisa que a gente não sabe. Se
for blefe, o que ele sabe então é que
somos idiotas, pois acreditamos que
sabem alguma coisa além do que há
para saber. Acreditamos sim, por isso olhamos tanto para eles, pros
nossos animais. Esperando a comunicabilidade impossível.
Voltando a eles, à raça, encontram
você ao acaso e o impacto de sua
chegada é maior. Pode ser de madrugada, numa lanchonete ordinária, mastigando palavras que te fazem esquecer o cheiro de hambúrguer e fritura.
Respirar não lhes basta. Precisam
confundir mundos, trocar lugares
de lugar, colocar a água do mar no
calçadão, transformar guaraná em
chope, papel em dinheiro, zumbis,
criaturas semimortas, em pessoas
com alguma vontade de sair de casa
e rir um pouco.
A linhagem é rara. Mas não tão rara que não se possa vê-los tomando
o metrô no largo do Machado, saltando em algum ponto de Copacabana, pegando telefones, fazendo ligações, marcando desencontros,
partindo, deixando uma fila sem fim
de cabeças que não entendem. Que
não podem esquecê-los simplesmente porque eles, os da raça, estão
vivos demais.
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