São Paulo, terça-feira, 25 de setembro de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Amor de mãe

Comitê das Mães dos Soldados luta contra abusos a recrutas do Exército na Rússia

O ESCRITÓRIO de Valentina Melnikova, presidente do Comitê das Mães dos Soldados, uma das ONGs mais combativas dos anos Putin, fica numa pequena sala, num prédio velho de uma ruela do centro de Moscou, a alguns metros da sede do atual Serviço Federal de Segurança (FSB, ex-KGB) e da antiga e temida prisão de Lubianka, para onde foram levados milhares de inocentes durante os expurgos de Stálin, nos anos 30.
É de praxe os recrutas serem submetidos a abusos e trotes violentos. Existe um termo para definir a prática: "dedovstchina" -"a lei do mais velho". Valentina Melnikova me corrige: "Não são só os mais velhos. A regra é: todos torturam todos".
Para dar uma idéia, em janeiro de 2006, o recruta Andrei Sichiov teve as pernas e os órgãos genitais amputados em decorrência de um trote durante o serviço militar. À época, o ministro da Defesa, Serguei Ivanov, atual vice-primeiro-ministro e o homem mais cotado para suceder Putin, disse que não era "nada muito sério". A única jornalista a divulgar a frase foi afastada de suas funções. Outro escândalo recente, noticiado pela mídia internacional, revelou que recrutas de São Petersburgo eram obrigados a se prostituir e trazer o dinheiro para os superiores.
"Três mil soldados e oficiais morrem por ano, sem contar a guerra da Tchetchênia e o Cáucaso", diz Melnikova. Das mortes consideradas "acidentais", 25% são suicídios.
O Comitê das Mães dos Soldados existe desde 1989. No início, pediam a liberação dos estudantes universitários que eram convocados. A reivindicação foi atendida. Hoje, um russo que estiver cursando a universidade (muitas vezes, é preciso pagar para entrar) só volta a estar sujeito ao serviço militar depois de formado. Daí em diante, e até os 27 anos (idade máxima para o serviço militar), passa a observar uma série de medidas para escapar à convocação: muda-se para endereço desconhecido, não atende a porta e nunca vai ao correio receber uma encomenda.
O outro objetivo inicial do comitê era coibir os maus-tratos. "Entramos em ação, com base na lei sobre o tratamento dos cidadãos, como está na Constituição: "O povo é a única fonte de poder". A partir de 1990, militares e políticos tentaram criar associações, do tipo "esposas dos oficiais", para esvaziar o movimento. Também precisamos estar atentas para o perigo das organizações que parasitam o sofrimento humano."
Meu interesse por Melnikova é ficcional. Estou na Rússia por um mês, para escrever um romance que será narrado pela mãe de um soldado. Em 2003, o comitê tentou fundar o Partido Único das Mães dos Soldados. Duas semanas depois de o partido ser formalmente constituído, a Duma votou uma nova lei, passando de 10 mil para 50 mil o número mínimo de membros para a constituição de um partido. "Não tínhamos dinheiro para manter essa estrutura. Reunimos 25 mil pessoas, em 60 regiões. Não eram só mães. Tínhamos oficiais, ex-oficiais. Nos unimos ao Partido Republicano, mas o Partido Republicano foi anulado, porque ficamos perigosos demais para o Kremlin."
O Partido das Mães dos Soldados visava a reforma completa das forças armadas, com profissionalização e fim do serviço militar compulsório. "Nenhum partido encontrou tanto respaldo quanto o nosso. Um jornalista escreveu: "Finalmente um partido sobre o qual não é preciso explicar nada a ninguém"."
Melnikova me mostra algumas cartas de soldados. Uma delas é especialmente perturbadora. O rapaz pede socorro, num guardanapo de papel. Na falta de alguém a quem recorrer, endereçou o envelope ao jornal da cidade mais próxima.
Pergunto sobre os advogados. "Não temos dinheiro para pagá-los. Resolvemos nós mesmas. Somos as maiores especialistas em questões militares na Rússia. Os soldados não têm condições de entrar em contato com advogados. E a procuradoria fornece advogados que já estão do lado dos algozes."
No escritório de Moscou, cinco mulheres dividem todo o trabalho. Recebem e respondem as cartas. Esclarecem caso a caso. Num primeiro momento, tentam internar o rapaz num hospital. "Em 99% dos casos, funciona. Ou, fazemos uma queixa à procuradoria", diz Melnikova.
O Comitê das Mães dos Soldados já não vive os piores momentos da guerra da Tchetchênia, quando tinha de atender entre 250 e 300 pessoas por dia. Ainda assim, quando minha intérprete e eu saímos da sala, há uma fila de espera no corredor e uma mulher que, revoltada com a nossa demora, esbraveja que não somos os únicos com assunto de vida ou morte para resolver.


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