São Paulo, sexta-feira, 25 de setembro de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

De vinhos e de molhos


A Virgem Imaculada abençoou o Reno e suas vinhas para um produto especial e famoso


ERRAMOS TODOS -e isso é tributo que pagamos aos mil acidentes naturais da carne e do espírito. Desde que um imbecil anônimo consagrou a cômoda fórmula de que errar é humano -geralmente a frase é citada em latim macarrônico e me dispenso de repeti-la- os erros aumentaram e ganharam certa impunidade.
Evidente, há erros e há erros. Desculpa-se, perdoa-se e esquece-se uma crase mal colocada, uma concordância pouco honesta, uma desculpa esfarrapada de que não se lembrou de um compromisso social, mas como perdoar um homicídio ou um genocídio ou qualquer coisa que termine em cídio?
Pois cometemos, há tempos, um cabuloso alemãocídio. Não esganamos nenhum cidadão teutônico, nem ganas disso tivemos ou temos, pois somos admiradores impenitentes da grande nação alemã e de seus filhos. Mas traduzimos erroneamente o título de um de seus vinhos mais famosos, justamente o mais conhecido da região do Reno.
Declaremos, de início, que não sabemos alemão. É uma vergonha um sujeito chegar a provecta idade e permanecer ignorando toda uma vasta zona do pensamento humano. Já fiz e refiz diversos propósitos inabaláveis de começar o estudo sistematizado, comprei gramáticas e antologias, pedi a amigos que me indicassem cursos e horários e, sobretudo, professores especializados em ensinar a ignorantes.
Pois já tive tudo em minha mão, mas, na hora da decisão, há sempre o pavor adolescente de entrar nas aulas e cometer gafes e suores frios, repetir experiências acumuladas em minha carne que tanto sofreu para aprender muita coisa inútil que hoje me entope a cabeça e não me serve para nada.
Mas voltemos ao alemão e a seu famoso vinho. Traduzi "Liebfraumilch" por "leite da mulher amada", versão que circula pelas tascas incultas da cidade. Pois recebo carta indignada da leitora esclarecendo que o nome do vinho é "leite de Nossa Senhora", pois a mulher amada dos alemães é a própria Virgem Imaculada que abençoou o Reno e suas vinhas para um produto tão especial e famoso.
A ignorância no assunto faz com que aceite placidamente a tradução. Mas continuo a preferir que o leite da mulher amada seja mesmo o da mulher amada, embora, em ocasiões mais sérias, preferisse o leite de Nossa Senhora.
E explico: na citação que fiz, quem tomava o leite da mulher amada era o finado mercador de livros, Carlos Ribeiro, estabelecido ali, em outra rua pia, a São José, com comércio e fábrica de livros. Ora, o velho mercador de livros era positivista convicto e disso não fazia segredos. Era talvez o único positivista militante no mundo, pois positivistas há que não mais militam, embora venerem, no fundo de suas consciências, positivas os positivos ensinamentos do Comte e da Clotilde.
Mas Carlos Ribeiro positivamente era um positivista positivo, editava obras do Alberto Faria, lia Comte todos os dias antes de se entregar ao repouso da carne e, nas horas vagas, bebia seu vinhozinho.
E aí surge o problema: poderia um positivista beber o leite de Nossa Senhora? Equivaleria a um eremita perdido no deserto beber néctar de Vênus (e creio que não exista tal beberagem no mercado), ou um maometano beber cachaça intitulada "Murrinha de Porco" (e não sei até que ponto o Alcorão proíbe prática tão condenável).
Assim, é certo que o velho mercador de livros jamais provaria de um vinho de Nossa Senhora. Carlos Ribeiro não é fanático, mas é fiel a seus princípios e, para ele, Liebfraumilch é leite da mulher amada.
Mesmo porque essa história de nomes em vinhos e comidas é um pouco calhorda.
Pois conto: frequentei, durante muitos anos, um hotel mais ou menos galante que servia umas almôndegas famosas e cujo molho, segundo o cardápio, era à "La Pompadour". Não faz muito, em andanças pela Úmbria, bela região central da Itália, hospedei-me por uma noite num convento de religiosas que não tinham clausura e recebiam hóspedes bem recomendados -alguém teve a ignomínia de me recomendar. Pois jantei no convento, velha construção do século 13, segundo me informaram.
Serviram-me as mesmas almôndegas e o mesmo molho. Mas ali, naquele átrio sombrio da cristandade, era molho de santa Teresinha.


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