São Paulo, sábado, 25 de setembro de 2010

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CRÍTICA CONTOS

Histórias de Munro são joias de consistência e tensão

"Felicidade Demais" retrata com densidade a pequenez da classe média

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alice Munro (1931), premiada autora canadense, é uma especialista no gênero do conto.
Alguns críticos lamentam que não escreva romances, ou elogiam seus contos dizendo que são tão profundos como romances.
São elogios tortos que não entendem a força do conto, vendo nele apenas preparação para o romance, gênero que supostamente seria mais complexo.
A ideia é bastante simplista: confunde extensão e complexidade, brevidade com facilidade. Munro é tão boa porque escreve contos com enorme domínio dos meios próprios do conto.
A antologia "Felicidade Demais", publicada no ano passado, o demonstra: dos dez contos, só o que lhe dá título falha em parte.
A história falha porque tem qualquer coisa de romance biográfico inconcluso sobre a russa Sophia Kovalevsky, primeira mulher a ocupar uma cátedra de matemática na universidade sueca e europeia. Fora daí, são peças resistentes a fórmulas, que exibem variedade sem exuberância, sutileza sem torneios e fino acabamento.
Três delas são joias de consistência e tensão: "Dimensões" (sobre a mãe cujos três filhos são mortos pelo pai), "Rosto" (sobre a menina que corta o rosto a navalha à imagem do defeito natural de seu amigo de infância), "Brincadeira de Criança" (sobre duas meninas que afogam uma terceira, deficiente).
A infância é, portanto, um tema recorrente. Mas a velhice também é, assim como as várias etapas da vida de gente da classe média da região de Ontário, na fronteira do rural e do urbano.

VIDA MEDIANA
Algumas vezes são pessoas com alguma ocupação intelectual, como escritores e professores, mas o assunto de Munro são sempre pequenas vidas laboriosas, sem grandes dificuldades ou planos, e mesmo sem grandes acontecimentos ao longo de um caminho genericamente plano e rápido: da infância que se evoca à doença terminal que se lamenta. Uma frase possível para descrever o tipo de afeto persistente no livro poderia ser: "Eu cresci, e fiquei velha".
Em meio a essa vida mediana, o conto de Munro descobre um evento único, de densidade insuspeita.
A frase mais reveladora então poderia ser: "Alguma coisa aconteceu aqui. Na vida são poucos os lugares, talvez apenas um lugar, onde aconteceu de fato alguma coisa, e depois vêm todos os outros lugares".
Dito assim, teríamos de entender que o conto extrai sua força de um impacto epifânico, no qual um momento único redefine a vida.
Mas não é bem isso. A epifania, em Munro, teria de ser redescrita fora do momento em que reluz: como um ponto cego.
O grande drama dessas vidas é esgarçado ao longo de sua pequenez e só toma sua dimensão decisiva como lembrança terminal, em geral motivada por um evento lutuoso.
Então revém com toda a violência -não raro, com violência insana- o recalcado da mediania.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp.

FELICIDADE DEMAIS

AUTOR Alice Munro
TRADUÇÃO Alexandre Barbosa de Souza
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49 (344 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo



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