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CRÍTICA CONTOS
Histórias de Munro são joias de consistência e tensão
"Felicidade Demais" retrata com densidade a pequenez da classe média
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Alice Munro (1931), premiada autora canadense, é
uma especialista no gênero
do conto.
Alguns críticos lamentam
que não escreva romances,
ou elogiam seus contos dizendo que são tão profundos
como romances.
São elogios tortos que não
entendem a força do conto,
vendo nele apenas preparação para o romance, gênero
que supostamente seria mais
complexo.
A ideia é bastante simplista: confunde extensão e complexidade, brevidade com facilidade.
Munro é tão boa porque escreve contos com enorme domínio dos meios próprios do
conto.
A antologia "Felicidade
Demais", publicada no ano
passado, o demonstra: dos
dez contos, só o que lhe dá título falha em parte.
A história falha porque
tem qualquer coisa de romance biográfico inconcluso
sobre a russa Sophia Kovalevsky, primeira mulher a
ocupar uma cátedra de matemática na universidade sueca e europeia.
Fora daí, são peças resistentes a fórmulas, que exibem variedade sem exuberância, sutileza sem torneios
e fino acabamento.
Três delas são joias de consistência e tensão: "Dimensões" (sobre a mãe cujos três
filhos são mortos pelo pai),
"Rosto" (sobre a menina que
corta o rosto a navalha à imagem do defeito natural de seu
amigo de infância), "Brincadeira de Criança" (sobre duas
meninas que afogam uma
terceira, deficiente).
A infância é, portanto, um
tema recorrente. Mas a velhice também é, assim como as
várias etapas da vida de gente da classe média da região
de Ontário, na fronteira do
rural e do urbano.
VIDA MEDIANA
Algumas vezes são pessoas com alguma ocupação
intelectual, como escritores e
professores, mas o assunto
de Munro são sempre pequenas vidas laboriosas, sem
grandes dificuldades ou planos, e mesmo sem grandes
acontecimentos ao longo de
um caminho genericamente
plano e rápido: da infância
que se evoca à doença terminal que se lamenta. Uma frase possível para descrever o
tipo de afeto persistente no livro poderia ser: "Eu cresci, e
fiquei velha".
Em meio a essa vida mediana, o conto de Munro descobre um evento único, de
densidade insuspeita.
A frase mais reveladora
então poderia ser: "Alguma
coisa aconteceu aqui. Na vida são poucos os lugares, talvez apenas um lugar, onde
aconteceu de fato alguma
coisa, e depois vêm todos os
outros lugares".
Dito assim, teríamos de entender que o conto extrai sua
força de um impacto epifânico, no qual um momento único redefine a vida.
Mas não é bem isso. A epifania, em Munro, teria de ser
redescrita fora do momento
em que reluz: como um ponto cego.
O grande drama dessas vidas é esgarçado ao longo de
sua pequenez e só toma sua
dimensão decisiva como
lembrança terminal, em geral motivada por um evento
lutuoso.
Então revém com toda a
violência -não raro, com
violência insana- o recalcado da mediania.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria
literária na Unicamp.
FELICIDADE DEMAIS
AUTOR Alice Munro
TRADUÇÃO Alexandre Barbosa de
Souza
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49 (344 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
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