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WALTER SALLES
Encontros, desencontros e o mapa da Tate
Em "A Bigger Splash", a exposição de arte britânica da Tate Gallery que tomou de assalto a
Oca de Niemeyer, há um trabalho
que desorienta mais do que os outros. É um mapa -mas não um
mapa qualquer. Detalha as cidades inglesas, só que nada está onde deveria estar.
Nesse mapa, Londres se deslocou. Foi parar do outro lado da
ilha. Manchester, cidade dos
Smiths e de outros grupos ingleses, também mudou de lugar. É
um mapa que subverte a geografia. Não é feito para você se encontrar, e sim para se perder. Interessantemente, a sensação de
deslocamento é acentuada pela
clareza com que a exposição, desenhada por Felipe Tassara e Daniela Thomas, é apresentada.
Nada mais expressivo do estado
de desterritorialização contemporâneo do que essa obra da artista
plástica Kathy Prendergast. A
não ser "Encontros e Desencontros", o novo filme de Sofia Coppola que a Mostra de São Paulo
apresenta hoje.
Delicadamente incendiário,
"Encontros e Desencontros" começa com uma premissa simples.
Bob Harris (Bill Murray), um
ator em franca decadência, chega
ao Japão para gravar um comercial de uísque. Sente-se deslocado
culturalmente. Não fala a língua.
Está em crise com a mulher, que
ficou em Los Angeles. Pior: está
com fuso horário trocado. Vaga
pelo bar e corredores do hotel à
noite.
Está só, somente só. Charlotte
(Scarlett Johansson) também.
Veio para Tóquio acompanhar o
marido, fotógrafo de grupos de
rock. A relação não caminha
bem. Como Bob, Charlotte vive
um momento de transição, que o
deslocamento geográfico acentua.
É como se esses dois personagens tivessem sido subitamente
projetados no mapa de Prendergast -com o agravante de todos
os sinais estarem em japonês. Bob
tem 55 anos, Charlotte 20. Eles
não têm aparentemente nada em
comum, a não ser a sensação de
não pertencerem a uma geografia
que lhes é estrangeira. Ao colocá-los lado a lado, Sofia Coppola nos
revela pouco a pouco o que realmente lhe interessa em "Encontros e Desencontros": a maneira
com que nos sentimos tantas vezes deslocados dentro de nós mesmos. É essa sensação que aproxima Bill de Charlotte.
São personagens doentes de seu
passado e incertos de seu futuro.
Não importa a diferença de idade
que eles têm, porque ambos sofrem da mesma angústia e dificuldade para entender seus lugares no mundo. A dor interna que
carregam vai pouco a pouco permeando o filme de uma gravidade que cala fundo, mas não é
nunca impositiva. As gargalhadas que "Encontros e desencontros" suscita no início dão lugar,
no final, a uma densidade emocional rara no cinema norte-americano.
Essa qualidade é realçada pela
inteligência das interpretações de
Bill Murray e Scarlett Johansson.
Murray dá corpo a um personagem ao mesmo tempo patético e
luminoso, uma espécie de Buster
Keaton ultrapassado pelos tempos modernos. Johansson confirma o talento revelado precocemente em "Mundo Cão" e "O Homem que Não Estava Lá". A vulnerabilidade que caracteriza seu
personagem é descortinada com
pequenos gestos. Nada é sublinhado, quase tudo é subentendido.
Em alguns momentos, é como se
a câmera não estivesse presente.
"Encontros e Desencontros" é um
daqueles poucos filmes em que o
que está na tela parece estar
acontecendo à frente de nossos
olhos, sem mediação.
Como "Amor à Flor da Pele", de
Wong Kar-wai, o filme de Sofia
Coppola descreve um encontro
amoroso que não se configura inteiramente, mas permite o reencontro de seus personagens com
eles mesmos. É como se, no final
do percurso, esse mapa desconhecido e inquietante que exploraram juntos ganhasse sentido. Não
se chega a essa conclusão de forma óbvia. Sofia Coppola vai nos
guiando até lá de forma delicada,
trabalhando em camadas superpostas.
Na época do tudo-mostrar característico da narrativa televisiva e de correntes cinematográficas recentes, tanto Wong Kar-wai
quanto Sofia Coppola optaram
por trafegar na contramão. Fazem um cinema sussurrado e poético. Cinema do não-dito, em que
nem tudo é mostrado. E talvez
por isso, em estado de graça.
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