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São Paulo, sábado, 25 de outubro de 2003

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WALTER SALLES

Encontros, desencontros e o mapa da Tate

Em "A Bigger Splash", a exposição de arte britânica da Tate Gallery que tomou de assalto a Oca de Niemeyer, há um trabalho que desorienta mais do que os outros. É um mapa -mas não um mapa qualquer. Detalha as cidades inglesas, só que nada está onde deveria estar.
Nesse mapa, Londres se deslocou. Foi parar do outro lado da ilha. Manchester, cidade dos Smiths e de outros grupos ingleses, também mudou de lugar. É um mapa que subverte a geografia. Não é feito para você se encontrar, e sim para se perder. Interessantemente, a sensação de deslocamento é acentuada pela clareza com que a exposição, desenhada por Felipe Tassara e Daniela Thomas, é apresentada.
Nada mais expressivo do estado de desterritorialização contemporâneo do que essa obra da artista plástica Kathy Prendergast. A não ser "Encontros e Desencontros", o novo filme de Sofia Coppola que a Mostra de São Paulo apresenta hoje.
Delicadamente incendiário, "Encontros e Desencontros" começa com uma premissa simples. Bob Harris (Bill Murray), um ator em franca decadência, chega ao Japão para gravar um comercial de uísque. Sente-se deslocado culturalmente. Não fala a língua. Está em crise com a mulher, que ficou em Los Angeles. Pior: está com fuso horário trocado. Vaga pelo bar e corredores do hotel à noite.
Está só, somente só. Charlotte (Scarlett Johansson) também. Veio para Tóquio acompanhar o marido, fotógrafo de grupos de rock. A relação não caminha bem. Como Bob, Charlotte vive um momento de transição, que o deslocamento geográfico acentua.
É como se esses dois personagens tivessem sido subitamente projetados no mapa de Prendergast -com o agravante de todos os sinais estarem em japonês. Bob tem 55 anos, Charlotte 20. Eles não têm aparentemente nada em comum, a não ser a sensação de não pertencerem a uma geografia que lhes é estrangeira. Ao colocá-los lado a lado, Sofia Coppola nos revela pouco a pouco o que realmente lhe interessa em "Encontros e Desencontros": a maneira com que nos sentimos tantas vezes deslocados dentro de nós mesmos. É essa sensação que aproxima Bill de Charlotte.
São personagens doentes de seu passado e incertos de seu futuro. Não importa a diferença de idade que eles têm, porque ambos sofrem da mesma angústia e dificuldade para entender seus lugares no mundo. A dor interna que carregam vai pouco a pouco permeando o filme de uma gravidade que cala fundo, mas não é nunca impositiva. As gargalhadas que "Encontros e desencontros" suscita no início dão lugar, no final, a uma densidade emocional rara no cinema norte-americano.
Essa qualidade é realçada pela inteligência das interpretações de Bill Murray e Scarlett Johansson. Murray dá corpo a um personagem ao mesmo tempo patético e luminoso, uma espécie de Buster Keaton ultrapassado pelos tempos modernos. Johansson confirma o talento revelado precocemente em "Mundo Cão" e "O Homem que Não Estava Lá". A vulnerabilidade que caracteriza seu personagem é descortinada com pequenos gestos. Nada é sublinhado, quase tudo é subentendido.
Em alguns momentos, é como se a câmera não estivesse presente. "Encontros e Desencontros" é um daqueles poucos filmes em que o que está na tela parece estar acontecendo à frente de nossos olhos, sem mediação.
Como "Amor à Flor da Pele", de Wong Kar-wai, o filme de Sofia Coppola descreve um encontro amoroso que não se configura inteiramente, mas permite o reencontro de seus personagens com eles mesmos. É como se, no final do percurso, esse mapa desconhecido e inquietante que exploraram juntos ganhasse sentido. Não se chega a essa conclusão de forma óbvia. Sofia Coppola vai nos guiando até lá de forma delicada, trabalhando em camadas superpostas.
Na época do tudo-mostrar característico da narrativa televisiva e de correntes cinematográficas recentes, tanto Wong Kar-wai quanto Sofia Coppola optaram por trafegar na contramão. Fazem um cinema sussurrado e poético. Cinema do não-dito, em que nem tudo é mostrado. E talvez por isso, em estado de graça.


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