São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

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FOTOGRAFIA

Suíço diz que sempre evitou retratar constrangimento e que credibilidade do fotógrafo é seu melhor equipamento

"Orgulho-me das fotos que não fiz", diz Burri

FREE-LANCE PARA A FOLHA

Uma das imagens mais conhecidas de René Burri é o retrato de Che Guevara, então com 35 anos, fumando um charuto em seu gabinete de ministro da Indústria, em Havana, em 1963. Burri recebeu a reportagem da Folha também envolto numa nuvem de charuto, que ele fumava enquanto contava animadamente sua trajetória nesses 50 anos de atividade. Ele falou sobre as fotografias que deixou de fazer, sobre fotografia digital e sobre São Paulo, entre outros temas. Leia a seguir alguns trechos. (EDER CHIODETTO)
 

SÃO PAULO
Ao chegar a São Paulo em 1960 a cidade me pareceu semelhante a Chicago, por causa do dinamismo e do poderio econômico. Eu ficava intrigado com a miscigenação e a mistura de culturas. Pensei, e ainda penso, que São Paulo pode vir a ser o exemplo de uma cidade multirracial que funciona em harmonia. Talvez daqui a uns 20 anos pode acontecer aqui uma revolução com o surgimento de um novo Che Guevara. Na verdade, acho que esse tempo é mais propício a uma evolução do que a uma revolução.
Na Europa tudo parece encaixado, é tudo pré-programado. Aqui as coisas ainda estão por serem feitas. Existe a possibilidade de se recriar sempre.

CUBA
Em 59, após seis meses na América Latina, optei por tirar férias e fui esquiar com minha família na Suíça, abrindo mão de ir fotografar "um monte de barbudos que estavam descendo da Sierra Maestra, em Cuba". Era a Revolução Cubana. Fiquei com um peso no coração por dois anos, até que me chamaram de novo e consegui fotografar o Che. Fiz uns oito rolos de filmes e não tem sequer uma foto em que ele esteja olhando para mim. Ele fazia um gênero de quem não estava suportando a minha presença. Ignorou-me completamente, talvez porque eu estivesse com uma americana.

DIGITAL E A MANIPULAÇÃO
Digital ou negativo é apenas uma questão técnica. O ato fotográfico vai além. O importante ainda é a sintonia entre olho, coração e pés. O problema está na credibilidade do fotógrafo e não no equipamento. Durante a Guerra Fria, os russos retocavam as fotos; hoje o mundo inteiro faz o mesmo.
Os fotógrafos têm a obrigação de fotografarem o mundo para que daqui a 100 anos se tenha um visão realista de hoje.
Todos parecem mais preocupados em se tornar celebridade que em trabalhar honestamente. A vida não é uma corrida rápida, é uma maratona.
As fotos feitas pelos fotógrafos infiltrados nos Exércitos americano e britânico na Guerra do Iraque são imagens hollywoodianas, isso não pode acontecer. Ficaram no conforto do abrigo e deixaram de contar a história real.
Acredito que seja necessário que os fotógrafos busquem a verdade e editores que tenham coragem de publicá-la.

FOTOGRAFIAS NÃO FEITAS
Não lamento as fotografias que não fiz. Aliás, eu me orgulho de várias fotos que deliberadamente não fiz. Nunca gostei de fotografar miséria, pessoas mortas ou em situação constrangedora.
Fotografar é importante, mas a vida e o respeito a ela estão na frente de tudo.

MAGNUM
Com a energia dos novos fotógrafos a Magnum pode manter a força. A questão é como se manter independente. Mas pode ser que um dia ela acabe. Já foi um milagre se manter por 60 anos. Isso ocorreu graças ao Cartier-Bresson, que dava as linhas mestras da agência. Ele tinha a capacidade de manter as pessoas reunidas em torno da árvore. Ele resistiu muito a aceitar fotógrafos contemporâneos como o Martin Parr, por exemplo.


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