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MOSTRA BR DE CINEMA
Primeiro filme da dupla, "Gosto de Sangue" é refeito com duração menor do que o original
Irmãos Coen ironizam mania de "versão de diretor"
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
Os irmãos Coen não dão ponto sem nó. Há ironia em tudo o que eles fazem, e não haveria
de ser diferente no relançamento
de "Gosto de Sangue".
O filme, o primeiro da dupla, foi
lançado em 1985 com duração de
97 minutos. Ganhou o Sundance
Festival e projetou o nome dos
Coen na nova cena independente
do cinema americano, quando
despontaram também Steven Soderbergh, Jim Jarmusch, Spike
Lee e alguns outros nomes que o
tempo se encarregou de apagar.
Em 2000, "Gosto de Sangue"
voltou aos cinemas dos EUA pouco antes de seu relançamento em
DVD, com o aposto "Versão do
Diretor" (o famoso "Director's
Cut"). A duração, agora, acusava
96 minutos -um minuto a menos, portanto.
Nas entrevistas da campanha de
relançamento, os Coen se gabaram do fato de ter feito o primeiro
"Director's Cut" menor do que a
versão original. Eles, na verdade,
cortaram cinco minutos e acrescentaram uma introdução, com o
depoimento de um distribuidor
(aparentemente fictício) dizendo
que o filme volta "sem as partes
chatas" e que agora, enfim, ficará
"para sempre jovem".
Com isso, é claro, os Coen estão
ironizando -não sem que muita
gente os levasse a sério- a mania
que se banalizou de relançar filmes com cenas adicionais antes
abandonadas na sala de montagem à revelia do diretor, por pressões de finalização e de produção.
Uma mania que, na verdade, raramente tem sentido artístico legítimo, estando muito mais ligada
a manobras comerciais para tornar um filme "velho" (segundo
parâmetros mercadológicos)
"novo" mais uma vez.
Dito isso, são praticamente imperceptíveis as diferenças entre as
duas versões. "Gosto de Sangue"
permanece o mesmo a não ser pelo tratamento sonoro um tanto
mais caprichado. Mantém o mesmo sentido do absurdo, a mesma
construção esperta e, sobretudo,
o mesmo humor que o tornaram
tão marcante no início dos anos
80 e que o sustentam como um filme que ainda merece ser visto,
quase 20 anos depois.
Sob a roupagem de vários gêneros cinematográficos, os Coen, na
verdade, filmam um só gênero: a
comédia de erros. São os mal-entendidos, os lapsos e os atos falhos
que movem os personagens
adiante e os fazem cair em armadilhas absurdas, sempre cômicas.
Ao lado de "Fargo" (96) e "O Homem que Não Estava Lá" (2001),
o roteiro de "Gosto de Sangue" é o
que melhor desenvolve essa característica e o que apresenta as
soluções mais brilhantes.
Os mal-entendidos envolvem o
dono de um bar, Marty (Dan Hedaya), que contrata um detetive
particular (M. Emmet Walsh) para seguir sua mulher (Frances
McDormand). Ela, aparentemente, está tendo um caso com o barman Ray (John Getz). É, portanto,
o clássico quarteto "noir" (marido enganado, mulher fatal, amante e detetive) que serve de ponto
de partida para as muitas situações absurdas, que se entrelaçam
até o fim tragicômico.
É o fim de "Gosto de Sangue",
aliás, que faz o filme dar o salto do
trivial para o singular. Não cabe,
aqui, estragar a surpresa das circunstâncias, mas o fato é que o
detetive (em interpretação brilhante de M. Emmet Walsh) tem
uma espécie de sublime "iluminação", percebendo a verdade dos
fatos (o que deveria ser seu objetivo profissional, mas não é) pouco
antes de morrer. É uma espécie de
antirredenção, que chega a ser comovente de tão hilária.
Gosto de Sangue
Blood Simple
Produção: EUA, 1984
Direção: Joel Coen
Com: Frances McDormand
Quando: hoje, às 21h50, no Cinearte;
3/11, às 16h20, na Sala UOL
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