São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

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MOSTRA BR DE CINEMA

Primeiro filme da dupla, "Gosto de Sangue" é refeito com duração menor do que o original

Irmãos Coen ironizam mania de "versão de diretor"

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Os irmãos Coen não dão ponto sem nó. Há ironia em tudo o que eles fazem, e não haveria de ser diferente no relançamento de "Gosto de Sangue".
O filme, o primeiro da dupla, foi lançado em 1985 com duração de 97 minutos. Ganhou o Sundance Festival e projetou o nome dos Coen na nova cena independente do cinema americano, quando despontaram também Steven Soderbergh, Jim Jarmusch, Spike Lee e alguns outros nomes que o tempo se encarregou de apagar.
Em 2000, "Gosto de Sangue" voltou aos cinemas dos EUA pouco antes de seu relançamento em DVD, com o aposto "Versão do Diretor" (o famoso "Director's Cut"). A duração, agora, acusava 96 minutos -um minuto a menos, portanto.
Nas entrevistas da campanha de relançamento, os Coen se gabaram do fato de ter feito o primeiro "Director's Cut" menor do que a versão original. Eles, na verdade, cortaram cinco minutos e acrescentaram uma introdução, com o depoimento de um distribuidor (aparentemente fictício) dizendo que o filme volta "sem as partes chatas" e que agora, enfim, ficará "para sempre jovem".
Com isso, é claro, os Coen estão ironizando -não sem que muita gente os levasse a sério- a mania que se banalizou de relançar filmes com cenas adicionais antes abandonadas na sala de montagem à revelia do diretor, por pressões de finalização e de produção. Uma mania que, na verdade, raramente tem sentido artístico legítimo, estando muito mais ligada a manobras comerciais para tornar um filme "velho" (segundo parâmetros mercadológicos) "novo" mais uma vez.
Dito isso, são praticamente imperceptíveis as diferenças entre as duas versões. "Gosto de Sangue" permanece o mesmo a não ser pelo tratamento sonoro um tanto mais caprichado. Mantém o mesmo sentido do absurdo, a mesma construção esperta e, sobretudo, o mesmo humor que o tornaram tão marcante no início dos anos 80 e que o sustentam como um filme que ainda merece ser visto, quase 20 anos depois.
Sob a roupagem de vários gêneros cinematográficos, os Coen, na verdade, filmam um só gênero: a comédia de erros. São os mal-entendidos, os lapsos e os atos falhos que movem os personagens adiante e os fazem cair em armadilhas absurdas, sempre cômicas. Ao lado de "Fargo" (96) e "O Homem que Não Estava Lá" (2001), o roteiro de "Gosto de Sangue" é o que melhor desenvolve essa característica e o que apresenta as soluções mais brilhantes.
Os mal-entendidos envolvem o dono de um bar, Marty (Dan Hedaya), que contrata um detetive particular (M. Emmet Walsh) para seguir sua mulher (Frances McDormand). Ela, aparentemente, está tendo um caso com o barman Ray (John Getz). É, portanto, o clássico quarteto "noir" (marido enganado, mulher fatal, amante e detetive) que serve de ponto de partida para as muitas situações absurdas, que se entrelaçam até o fim tragicômico.
É o fim de "Gosto de Sangue", aliás, que faz o filme dar o salto do trivial para o singular. Não cabe, aqui, estragar a surpresa das circunstâncias, mas o fato é que o detetive (em interpretação brilhante de M. Emmet Walsh) tem uma espécie de sublime "iluminação", percebendo a verdade dos fatos (o que deveria ser seu objetivo profissional, mas não é) pouco antes de morrer. É uma espécie de antirredenção, que chega a ser comovente de tão hilária.


Gosto de Sangue
Blood Simple
   
Produção: EUA, 1984
Direção: Joel Coen
Com: Frances McDormand
Quando: hoje, às 21h50, no Cinearte; 3/11, às 16h20, na Sala UOL



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