|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Virou moda ter elenco multirracial"
"Estão acreditando que podemos fazer", diz atriz Ruth de Souza, sobre o fato de 3 novelas terem protagonistas negras
Diretor da Globo diz que se trata de "coincidência'; ator Lázaro Ramos vê boas audiências como estímulo para escalação
AUDREY FURLANETO
DA SUCURSAL DO RIO
Em um de seus trabalhos na
Globo, "Sinhá Moça" (2006),
Ruth de Souza, 88, uma das primeiras atrizes negras a fazer
TV no Brasil, reclamou: seu papel não tinha nome, era apenas
"a velha". Seu par, vivido pelo
ator também negro Clementino Kelé, era o Pai Tobias. "Eu
disse: "Será possível que a pobre
dessa personagem não tenha
nem nome?". Aí botaram Mãe
Maria. E falei: "É Mãe Maria,
Pai João e o moleque de recados. Como sempre. E nós já estamos no século 21."
Naquela trama, Ruth seguiu
com o mesmo nome e, agora,
três anos depois, vê "alguma
mudança". De quatro novelas
da Globo, três têm negras como
protagonistas: Taís Araújo, em
"Viver a Vida", Camila Pitanga,
em "Cama de Gato", e Élida
Muniz, em "Malhação".
"Está na moda. Estão acreditando que podemos fazer. Até
então, éramos vistos como Pai
João, Mãe Maria e o moleque
de recados", diz a atriz, que protagonizou "A Cabana do Pai Tomás" (1969). Nela, Sérgio Cardoso, como diz a Globo, "precisou pintar rosto e corpo de preto, usar perucas e inserir rolhas
no nariz" para viver um negro.
Na versão "moderna" (e
oposta) da caracterização, Taís
Araújo, 30, usou peruca para
ter o cabelo perfeitamente liso
em "A Favorita" (2008). Já em
"Viver a Vida", assumiu o cabelo crespo. "Pela primeira vez,
temos uma Xuxa negra", avalia
Joel Zito Araújo, autor do livro
e do filme "Negação do Brasil".
"Taís é Xuxa no sentido icônico, de um modelo carismático de beleza", diz. Ruth de Souza concorda: "É a volta do
"black is beautiful'". Ou um
"modismo", como diz José Bonifácio de Oliveira Sobrinho.
Embora "a escalação não seja
estratégia de marketing", diz
ele, "há um marketing em cima
desse crescimento". "Reconhecer que o negro é igual é importante e politicamente correto.
É entrar na tendência."
A inserção do negro, no entanto, não "rompe com a carga
secular de estereótipos. Não
podemos cair na visão ingênua
de que, agora, as novelas vão
defender o negro como modelo
de pureza e beleza", diz Joel.
Para o cineasta, o fato é ainda
reflexo da estética da TV e do
cinema dos EUA, que popularizou artistas negros como Will
Smith, e de mudanças sociais:
passou de 45% para 51% a porcentagem dos que se declaram
pretos e pardos no Brasil (de
1998 para 2008). E cresceu de
8% para 15% a presença no grupo do 1% mais rico do país.
Sem cota
Por 20 dias, a Folha procurou Camila Pitanga e Taís
Araújo para falar sobre o assunto, mas não foi atendida.
Em outra entrevista, Camila
afirmou que o fato de ter três
protagonistas negras no ar é
"uma conquista histórica".
Em comunicado, a Globo informou que "pela legislação,
cabe somente à própria pessoa
indicar sua origem racial". Por
isso, não diz quantos atores negros estão no ar.
Já a Record tem sete negros
em duas novelas. Em "Poder
Paralelo", de 50 papéis, eles interpretam três. "Nas reuniões
de escalação de elenco, sempre
se alerta sobre a importância
de escalar atores negros", diz o
autor Lauro Cesar Muniz.
Para o diretor da Central
Globo de Comunicação, Luis
Erlanger, o que se vê nas novelas agora é "coincidência". "Na
escalação, coincidiu que diretores e autores convocassem
atores negros. Está coincidindo
agora? Está. Pode não coincidir
nas próximas [novelas]? Pode."
Questão comercial
Formado no Bando de Teatro Olodum, grupo de atores
negros, Lázaro Ramos, 30, diz
que isso é "motivado também
por questão comercial". "Produtos com negros têm boas audiências." Exemplo: "Cobras &
Lagartos" (2006), com ele, Taís
e Milton Gonçalves, teve, em
média, 45 pontos no Ibope.
"Não gosto de levar esse debate para a questão social, da
diversidade. Não é questão social, mas artística", diz o ator.
Como Lázaro, Dani Ornellas
foi do teatro e cinema à TV. Aos
31, contabiliza oito longas.
Na TV, porém, fez três novelas -duas como escrava e uma
como iaô do candomblé. "Televisão é mais difícil. Não é o fato
de estar como escravo ou empregado, mas da importância
na trama. Não adianta ter negros à margem da história."
Para Ruth e Lázaro, há outra
questão: faltam autores negros.
"Como o autor vai escrever um
bom papel se ele só vê as negras
na cozinha dele? Ou no samba
com o bumbum rebolante?",
questiona Ruth. "A tendência
da TV, com os mesmos autores,
é que as histórias fiquem no
mesmo universo", diz Lázaro.
Os autores apontam para outro lado: até então, "existia uma
grande carência de atores mais
jovens", afirma Silvio de Abreu,
de "Belíssima" (2005). "O que
muda não é a cor da pele, mas o
interesse do autor. Ninguém
vai arriscar escrever um papel
importante se não tiver ator para interpretá-lo."
Ele completa: "Antigamente,
quando se pensava uma família
negra, havia os pais (Zezé Motta, Milton Gonçalves, Antônio
Pitanga) ou os avós (Ruth de
Souza, Grande Othelo)".
Já João Emanuel Carneiro,
de "Cobras & Lagartos" e "Da
Cor do Pecado" (2004), diz que
"temos excelentes atores negros e é importante que eles
não façam papéis de "negros'".
Texto Anterior: Crítica/DVD/"A Condição Humana": Épico demonstra vigor do cinema japonês dos anos 60 Próximo Texto: Análise: Na TV, negros são perfeitos ou caricatos Índice
|