São Paulo, sábado, 25 de novembro de 2000

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Black Soul Brothers

ONDA REABILITA IRMÃOS GERSON KING COMBO E GETÚLIO CÔRTES

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Getúlio Cortês e Gerson King Combo na frente do prédio da extinta TV Rio, onde trabalharam nos anos 60



Um dos pais do black nacional volta a gravar; tributo deve homenagear precursor


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Depois de três décadas no limbo, a música black brasileira dá sinais cada vez mais evidentes de que está de volta.
O ano de 2000 viu a ascensão de Max de Castro, Wilson Simoninha, Jairzinho Oliveira e Funk Como le Gusta, todos trabalhando nesse registro. Ed Motta orienta uma compilação de canções de Cassiano. Em Minas Gerais, surge o grupo Berimbrown, black music de raiz com filosofia brasileira. De quebra, o grupo reabilita um dos pais do movimento black nacional, Gerson King Combo, 56.
É hora, então, de rever o passado. Gerson -que trabalha em estúdio gravando um novo disco após quase duas décadas afastado-, foi o criador de "Mandamentos Black", um dos hinos do "black is beautiful" à brasileira.
Ele dá um aperitivo de seu som a São Paulo hoje, no Museu de Arte Moderna do parque Ibirapuera, participando de apresentação gratuita do Berimbrown. O show é coletivo, e a entrada do grupo está prevista para as 15h.
Poucos sabem, mas Gerson é irmão mais novo de um precursor: Getúlio Côrtes, 62, compositor ligado nos 60 à jovem guarda e a Roberto Carlos. Seu clássico "Negro Gato" (63) traça uma inusitada linha de ligação entre a jovem guarda e a black music.
Cariocas de Madureira, os "black soul brothers" -a expressão vem das letras de King Combo-, Getúlio e Gerson viram o nascimento do rock brasileiro e, no ocaso da jovem guarda, sua substituição (ou transmutação?) por soul e funk, no início dos 70.
Levando vidas modestas e afastados dos meios de produção de música popular, os irmãos se reuniram no Rio, a convite da Folha, para falar de suas histórias e perspectivas de volta. Leia trechos.

Folha - Como começou a história musical de vocês?
Gerson King Combo -
Em 61, existia na rádio Mayrink Veiga o programa "Hoje É Dia de Rock". Eu tinha um grupo de dança e dublagem, entre 61 e 65. Éramos, sem falsa modéstia, os melhores. Depois parei para servir o Exército, fui ser pára-quedista. Getúlio seguiu porque conheceu Renato, dos Blue Caps.

Getúlio Côrtes - Eu acompanhava muito porque queria entrar no bolo dos artistas que estavam começando na época. Virei o faz-tudo de Renato e Seus Blue Caps. Carregava instrumento, cuidava da aparelhagem. Assim eu estava no bolo, já começando a compor. Roberto Carlos estava gravando seu primeiro LP de jovem guarda e pediu que eu fizesse uma música para ele. Fiz "Noite do Terror" (65), ele gravou. Mas "Negro Gato" foi minha primeira composição. Fiz em 63, mas só foi gravada em 65. Era um gato que não deixava ninguém dormir em Madureira, eu só enfeitei o pavão. Foi gozado, porque teve outra interpretação. Levaram "há tempos que não sei o que é um bom prato/ eu sou o negro gato" para o lado social, do negro discriminado. Não era nada disso. Era um gato sem-vergonha. Mas tudo bem.

Folha - "Negro Gato" não foi uma precursora do movimento black?
Gerson -
Não, "Negro Gato" era em ritmo de rock, que não era muito meu esquema. Hoje, com a linguagem do hip hop, teria outra conotação. Mas há certas coisas que o hip hop não aceita. Em "sou um negro gato" já está aí "sou um negro" -sei que sou negro, mas não precisa chamar de negro. Eles são muito radicais no social.

Folha - Por que Roberto parou de gravar músicas de Getúlio?
Getúlio -
Acredito que tudo tem um ciclo. Essa fase acabou, começaram a vir outros compositores. Já mostrei alguns trabalhos para Roberto, ele diz "espera um pouquinho" e tal... Musicalmente falando a coisa não está muito acessível. Há aquele aparato, é difícil chegar no Roberto atualmente. Mas não estou usando isso como desculpa, ainda não fiz uma coisa à altura. É culpa minha.

Folha - E sua história, Gerson?
Gerson -
Fui para a TV Rio, virei bailarino e coreógrafo de todos os programas. Fui o precursor daquelas mulheres que ficam rebolando a bunda, as chacretes. Era coreógrafo do Chacrinha. Eu e Tim Maia cantávamos como se fôssemos uma dupla americana e arrebentávamos. Fui o que a garotada do hip hop hoje chama de old school. Eles viram em mim uma referência legal. Nem sei se fui precursor, mas fui um dos primeiros a cantar falado. Na época da revolução, houve uma pessoa da classe pobre, da periferia, que falou umas coisas... O Estado era contra qualquer palavra de ordem, que negro era lindo ou qualquer coisa. Tim Maia poderia até ser o rei do soul, mas rei dos blacks era comigo mesmo. Tim cantava o amor, MPB, não era contestador. Eu já fui dizendo "seja black". Até aí o social estava parado, só havia os movimentos americanos. Vim de lá e comecei a espalhar. Tim Maia falava de Brooklyn, Bronx. O social gritou mais forte por causa da repressão.
Toni Tornado apareceu em 70, alavancado pelo festival. Eu é que ia cantar "BR-3", cheguei a ensaiar. Não acharam o Gersão, puseram a figura lá. Fiquei chateado, mas passou. Naquele festival eu estava no coral negro de "Eu Quero Mocotó", com Erlon Chaves. A Censura estava lá, "se cantar essa música vai ser preso". Para eles "eu quero mocotó" tinha duplo sentido, do povo passando fome. Falei: "Não vou em cana, não". Me mandei no meio do público.


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