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Carlos Heitor Cony
Em busca do contraponto
O escritor diz que o romance no qual trabalha, "Messa para o Papa Marcello" , inspirado em obra do século 16, do compositor Palestrina, será uma tentativa de encontrar uma dimensão mais profunda de sua literatura
Ricardo Moraes/Folha Imagem
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O escritor Carlos Heitor Cony em seu escritório, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro |
PAULA CESARINO COSTA
DIRETORA DA SUCURSAL DO RIO
SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL AO RIO
No pequeno escritório próximo ao largo do Machado, no
Rio de Janeiro, Carlos Heitor Cony, 80, dá as costas para o
computador. Física e mentalmente. Depois de ter terminado um romance em apenas dez
dias -o escritor é famoso pela
sua rapidez- Cony disse ter ficado esgotado e está dando um
tempo dos teclados.
O resultado dessa sua última
maratona é "A Morte e a Vida", romance sobre a eutanásia, que será
lançado no mês que vem.
Autor de mais de 30 livros,
entre romance, crônica, jornalismo e ensaios biográficos
-sem contar os infanto-juvenis-, Cony terá, a partir deste
mês, suas obras completas de
ficção relançadas pela Alfaguara -selo da editora Objetiva.
O primeiro relançamento,
"Quase Memória", chega às livrarias nesta semana.
Em entrevista à Folha, Cony
contou que uma recente temporada passada no hospital,
onde recuperou-se de uma cirurgia, proporcionou-lhe uma
nova forma de inspiração: "Fiquei muito tempo olhando o
teto. O teto inspira muito, qualquer teto. É uma tela onde eu
projeto meus filmes".
E o que deve sair dessa atual
temporada de contemplação
do teto? Cony diz que será um
romance no qual quer encontrar o seu "contraponto". E explica usando o exemplo do
compositor Palestrina [Giovani Pierluigi da Palestrina
(1525-1594)]. O músico romano introduziu o contraponto
na música, no século 16, dando-lhe profundidade a partir da
sobreposição de linhas melódicas. Da mesma forma, Cony
quer atingir um ponto em sua
vida literária em que conseguirá entender a si mesmo de um
modo mais profundo.
Leia os principais trechos da
conversa com o escritor, que é
colunista da Folha desde 1993.
Antes, nos anos 60, Cony também teve uma coluna no jornal,
que revezava com a escritora
Cecília Meireles (1901-1964).
FOLHA - Seu próximo livro, "A Morte e a Vida" foi feito sob encomenda
e é sobre enfermagem. Por quê?
CARLOS HEITOR CONY - O acordo
com quem encomendou [Conselho Nacional de Enfermagem
patrocina coleção da editora
Mondrian] era de que era preciso ter uma enfermeira na história. Eu aproveitei esse tema
para discutir a eutanásia. É um
questionamento sobre o valor
da eutanásia. Sou a favor da eutanásia. Mas no livro eu não pude defender isso. O livro é a favor da ortotanásia. Ou seja, está
politicamente correto. Será talvez o único livro politicamente
correto que eu escrevi (risos).
FOLHA - Está pronto?
CONY - Sim, e ele me esgotou,
pois escrevi muito rápido, em
apenas dez dias.
FOLHA - O sr. é famoso pela rapidez. Qual foi o seu recorde?
CONY - Nove dias. Foi meu segundo romance, "A Verdade de
Cada Dia", que eu escrevi rápido porque não queria perder o
prazo para inscrevê-lo num
prêmio. E ele ganhou.
FOLHA - Depois, essa rapidez virou
um vício?
CONY - Ou eu faço rápido ou eu
não faço. Tanto ficção como as
crônicas para o jornal. Se eu começo uma crônica e interrompo, já não sai mais. Não sei por
que sou assim. Se eu fosse gago,
não seria uma qualidade nem
um defeito, eu seria gago. Então, eu escrevo rápido. Talvez
seja uma gagueira minha, uma
gagueira às avessas (risos).
FOLHA - O sr. vira noites?
CONY - Não, eu escrevo rápido
mesmo. Mas isso também me
dá uma certa repulsa depois.
Hoje, por exemplo, estou de
costas para o teclado. Nos últimos dias, inclusive, não tenho
escrito, tenho ditado as colunas
para minha secretária. Depois
eu as corrijo à mão, e ela passa
para o computador.
FOLHA - O sr. disse, há anos, que estava escrevendo um livro, que seria
seu último romance, "Messa para o
Papa Marcello"...
CONY - Tenho fragmentos,
mas o livro ainda não está encaminhado. Preciso resolver alguns problemas antes. Fiz uma
cirurgia e por isso fiquei muito
tempo olhando o teto. O teto é
muito inspirador, qualquer teto. Desde um barroco, de uma
igreja mineira, até um neoclássico ou mesmo o teto do meu
quarto. É uma tela onde projeto meus filmes, em que eu sou
diretor, ator, roteirista. Daí têm
vindo as minhas idéias.
FOLHA - Como será esse livro?
CONY - Tirei o título de uma
missa do Palestrina. Até ele, a
música tinha só duas dimensões, ritmo e melodia. A música
moderna nasceu com Palestrina, principalmente em "Messa
para o Papa Marcello", que ele
compôs por encomenda, para
homenagear o novo papa. Esse
papa não foi importante, morreu moço e ficou poucos dias no
papado.
A música de Palestrina introduziu o contraponto, dando
uma terceira dimensão à música. A partir daí, a música ficou
muito mais real, mais humana.
Meu caso, nesse romance, será
encontrar o meu contraponto.
Como ainda não o encontrei,
não escrevi o livro.
O livro será uma tentativa de
me entender. Eu nunca me entendi. E o romance será a declaração de que realmente é impossível me entender.
FOLHA - O sr. já disse que seus livros realmente importantes eram
"Pessach", "O Ventre" e "Pilatos".
CONY - É, eu só considero mesmo esses três. Não gosto do
"Quase Memória". Gosto muito do "Ventre". E talvez em "Tijolo de Segurança" eu veja alguma coisa minha. Os outros considero livros de linha.
FOLHA - Mas por que "Pilatos" é o
preferido?
CONY - O "Quase Memória"
qualquer um pode escrever.
Pior ou melhor. Qualquer pessoa que resolva visitar a figura
do pai pode fazê-lo. Agora, o
"Pilatos" não.
FOLHA - Por quê?
CONY - Porque precisa ter coragem para romper com a literatura e com a moral como eu
fiz nesse livro. E não o fiz como
uma declaração de princípios,
de uma forma contestatória.
O livro rompe com a moral
naturalmente. Praticamente
toda a literatura é contra a moral. Sartre, Machado de Assis,
Balzac, todos contestaram a
moral de seu tempo. Mas, até
certo ponto, eles o fizeram como uma declaração de princípios. "Pilatos"" não tem moral
nenhuma. O rompimento com
a literatura, com o bom gosto,
sai sem soar como pregação. O
livro não tem mensagem. Os
outros, Sartre, Flaubert, são
panfletários da antimoral. Meu
livro não é panfleto.
FOLHA - Na época da ditadura, "Pilatos" teve uma leitura política. A
idéia de lavar as mãos...
CONY - Eu lavei as mãos porque fiz minha obrigação. Quando veio o Golpe, critiquei, fui
preso seis vezes. Não mudei o
mundo, nem o Brasil, nem a
mim mesmo. Mas adquiri coragem para fazer "Pilatos".
Estava cansado de falar mal
da ditadura. "Pilatos" não deixa
de ser uma forma de mostrar
que a ditadura faz com que os
cidadãos fiquem castrados.
Mas sem nenhum tom de panfleto, nem político, nem moral.
FOLHA - Por conta desse "cansaço", o sr. foi criticado e patrulhado.
CONY - Sim. Muito patrulhado.
A primeira edição de "Pilatos"
teve 5.000 exemplares, que esgotaram rápido. A segunda encalhou porque houve uma onda
contra o livro e contra mim.
Mas eu estava bem na "Manchete" e viajando muito. Eu tive
seis prisões, a "Manchete" foi
minha sétima prisão. Uma prisão muito confortável. Agora,
eu fui muito patrulhado, pela
direita e pela esquerda.
FOLHA - Como você vê a crise que a
esquerda vive hoje?
CONY - Em 1964, numa das minhas crônicas contra o regime,
nos primeiros dias de abril, falei que considerava a esquerda
um grupo de imbecis, o que não
impediu que eu tomasse uma
atitude de esquerda. Muita
gente pensou, então, que eu estava me entregando a uma posição de esquerda. Mas isso não
era verdade.
Sempre pensei que não tinha
disciplina para ser de esquerda.
E não tinha idéias fixas para ser
de direita. Não gosto do centro,
porque o centro é oportunista.
Então o que me sobra? Sobra
ser um anarquista triste e inofensivo, é o que eu sou.
FOLHA - O sr. foi um crítico contundente tanto de Fernando Henrique
Cardoso como tem sido de Lula.
CONY - São dois governos diferentes na morfologia, mas, na
sintaxe, são iguais. O Lula é
pior que o FHC porque decepcionou. Quando foi eleito, mesmo as pessoas que não votaram
nele achavam que ia acontecer
alguma coisa de novo. E não
aconteceu nada novo, aconteceu a coisa mais velha do mundo, que é a demagogia. O Fome
Zero, um troço paternalista, assistencialista, o Estado não pode dar comida, tem que dar
condições para que todos tenham comida.
O FHC fazia uma democracia mais sofisticada, mas no
fundo era a mesma coisa. O
grande mal dele foi ter optado
pelo neoliberalismo. Mas ele
não tapeou ninguém.
O Lula decepcionou, não só
nas linhas básicas, por continuar o governo do FHC, como
também se envolveu com corrupção. Houve corrupção no
governo FHC, acho até que
maior. O PT se comprometeu
por migalhas. O governo Lula é
provinciano até na corrupção.
FOLHA - Tanto FHC como Lula disputam a imagem de Juscelino Kubitschek. Qual deles leva?
CONY - Nenhum. O JK era um
homem provinciano. Ele queria fazer pontes, estradas. Era
estadista sem saber. FHC pensou que era estadista e não era.
E o Lula nem pensa nada. Não
sabe nem o que é um estadista.
JK prometeu obras sem querer mexer na estrutura da sociedade. Mas o desenvolvimento que essas obras propiciaram
mexeu com o Brasil. Há um
Brasil antes e depois de JK.
FOLHA - Como é hoje a sua relação
pessoal com a religião?
CONY - Tenho admiração por
santos. Não por serem santos,
mas pelos homens que foram.
São José era noivo de uma menina de 15 anos, aí veio um anjo
e disse: "Olha, tua noiva tá grávida, não esquenta a cabeça que
você não entende isso". E ele
aceitou, isso é sensacional.
FOLHA - Mas isso não seria mais
uma admiração pela fábula do que
pela santidade em si?
CONY - Sim, talvez pela fábula.
Ela é tão perfeita quanto o
"Chapeuzinho Vermelho".
FOLHA - Você não reza nem acende velas?
CONY - Não rezo, mas estou
sempre acendendo velas. No
geral, é difícil aceitar Deus, mas
no plano da vida diária é mais
fácil. Eu já senti uma mão especial, não digo que seja a mão de
Deus, mas uma mão especial,
algumas vezes sobre a minha
vida, sobre o meu destino.
FOLHA - Em momentos de dificuldade?
CONY - Não, em coisas prosaicas. Quando eu estive preso,
não sentia mão nenhuma, sentia a mão do soldado que estava
me algemando. Mas, às vezes,
olho pra parede e sinto uma
coisa superior a mim, a tudo o
que eu penso, a tudo o que eu
sou, a tudo o que eu podia ser e
a tudo o que os outros são.
Também não sou masoquista, quando digo que sou uma
pessoa frágil, que não se entende. Eu sei que os outros também não se entendem. Mas eu
proclamo isso abertamente,
assim como proclamo que olho
pra parede e vejo uma mão superior. Mas não aceito essa
mão. Vejo e não aceito, porque
minha cabeça recusa qualquer
coisa sobrenatural.
FOLHA - Como é fazer parte da
Academia Brasileira de Letras?
CONY - Gosto do ambiente da
ABL. Ela é o reverso da escola.
Você vai para lá sem futuro,
mas com o passado. Não precisa provar mais nada. Lá encontra as pessoas que têm uma vida, um passado. E o passado
torna todo mundo amigo.
FOLHA - Você foi criticado em
2004, quando a Comissão de Anistia anunciou que você tinha direito
a uma pensão de R$ 19.115,19 e a
uma indenização de R$ 1,4 milhão
[por ter sido perseguido pela ditadura]. Esse episódio foi superado?
CONY - Primeiro, eu não sabia
sobre o projeto da anistia. Um
amigo me alertou, dei uma procuração e ele fez o dossiê que
era necessário para requerer o
benefício. Um dos três membros que estavam julgando disse: "Não preciso de dossiê, vou
dar o direito à indenização".
Deu no escuro, porque conhecia o caso. Tinha tudo nesse
dossiê, a minha saída da TV
Rio, os episódios em que tentaram sequestrar minhas filhas,
a invasão do "Correio da Manhã". Eu perdi dois empregos.
Diante desse material, eu pedi
e me deram o benefício.
O Zé Dirceu foi perseguido,
mas era estudante, não perdeu
nada. O Gabeira também não
perdeu nada. Eu estava no
mercado de trabalho. Trabalhava no "Correio da Manhã" e
na TV Rio. Tive de sobreviver
com pseudônimo, fui considerado uma não-persona.
FOLHA - Isso acabou?
CONY - Acabou por uma questão muito simples, porque ainda não ganhei nada.
FOLHA - Nada?
CONY - Ainda está em trâmite
o meu caso. Faz um ano e meio.
Levei porrada sem ter o benefício. Mas tudo bem, não morri
de fome nem vou morrer. Vou
morrer de outra coisa.
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