São Paulo, sábado, 25 de novembro de 2006

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Carlos Heitor Cony

Em busca do contraponto

O escritor diz que o romance no qual trabalha, "Messa para o Papa Marcello" , inspirado em obra do século 16, do compositor Palestrina, será uma tentativa de encontrar uma dimensão mais profunda de sua literatura

Ricardo Moraes/Folha Imagem
O escritor Carlos Heitor Cony em seu escritório, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro


PAULA CESARINO COSTA
DIRETORA DA SUCURSAL DO RIO

SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

No pequeno escritório próximo ao largo do Machado, no Rio de Janeiro, Carlos Heitor Cony, 80, dá as costas para o computador. Física e mentalmente. Depois de ter terminado um romance em apenas dez dias -o escritor é famoso pela sua rapidez- Cony disse ter ficado esgotado e está dando um tempo dos teclados.
O resultado dessa sua última maratona é "A Morte e a Vida", romance sobre a eutanásia, que será lançado no mês que vem.
Autor de mais de 30 livros, entre romance, crônica, jornalismo e ensaios biográficos -sem contar os infanto-juvenis-, Cony terá, a partir deste mês, suas obras completas de ficção relançadas pela Alfaguara -selo da editora Objetiva. O primeiro relançamento, "Quase Memória", chega às livrarias nesta semana.
Em entrevista à Folha, Cony contou que uma recente temporada passada no hospital, onde recuperou-se de uma cirurgia, proporcionou-lhe uma nova forma de inspiração: "Fiquei muito tempo olhando o teto. O teto inspira muito, qualquer teto. É uma tela onde eu projeto meus filmes".
E o que deve sair dessa atual temporada de contemplação do teto? Cony diz que será um romance no qual quer encontrar o seu "contraponto". E explica usando o exemplo do compositor Palestrina [Giovani Pierluigi da Palestrina (1525-1594)]. O músico romano introduziu o contraponto na música, no século 16, dando-lhe profundidade a partir da sobreposição de linhas melódicas. Da mesma forma, Cony quer atingir um ponto em sua vida literária em que conseguirá entender a si mesmo de um modo mais profundo.
Leia os principais trechos da conversa com o escritor, que é colunista da Folha desde 1993.
Antes, nos anos 60, Cony também teve uma coluna no jornal, que revezava com a escritora Cecília Meireles (1901-1964).

 

FOLHA - Seu próximo livro, "A Morte e a Vida" foi feito sob encomenda e é sobre enfermagem. Por quê?
CARLOS HEITOR CONY -
O acordo com quem encomendou [Conselho Nacional de Enfermagem patrocina coleção da editora Mondrian] era de que era preciso ter uma enfermeira na história. Eu aproveitei esse tema para discutir a eutanásia. É um questionamento sobre o valor da eutanásia. Sou a favor da eutanásia. Mas no livro eu não pude defender isso. O livro é a favor da ortotanásia. Ou seja, está politicamente correto. Será talvez o único livro politicamente correto que eu escrevi (risos).

FOLHA - Está pronto?
CONY -
Sim, e ele me esgotou, pois escrevi muito rápido, em apenas dez dias.

FOLHA - O sr. é famoso pela rapidez. Qual foi o seu recorde?
CONY -
Nove dias. Foi meu segundo romance, "A Verdade de Cada Dia", que eu escrevi rápido porque não queria perder o prazo para inscrevê-lo num prêmio. E ele ganhou.

FOLHA - Depois, essa rapidez virou um vício?
CONY -
Ou eu faço rápido ou eu não faço. Tanto ficção como as crônicas para o jornal. Se eu começo uma crônica e interrompo, já não sai mais. Não sei por que sou assim. Se eu fosse gago, não seria uma qualidade nem um defeito, eu seria gago. Então, eu escrevo rápido. Talvez seja uma gagueira minha, uma gagueira às avessas (risos).

FOLHA - O sr. vira noites?
CONY -
Não, eu escrevo rápido mesmo. Mas isso também me dá uma certa repulsa depois. Hoje, por exemplo, estou de costas para o teclado. Nos últimos dias, inclusive, não tenho escrito, tenho ditado as colunas para minha secretária. Depois eu as corrijo à mão, e ela passa para o computador.

FOLHA - O sr. disse, há anos, que estava escrevendo um livro, que seria seu último romance, "Messa para o Papa Marcello"...
CONY -
Tenho fragmentos, mas o livro ainda não está encaminhado. Preciso resolver alguns problemas antes. Fiz uma cirurgia e por isso fiquei muito tempo olhando o teto. O teto é muito inspirador, qualquer teto. Desde um barroco, de uma igreja mineira, até um neoclássico ou mesmo o teto do meu quarto. É uma tela onde projeto meus filmes, em que eu sou diretor, ator, roteirista. Daí têm vindo as minhas idéias.

FOLHA - Como será esse livro?
CONY -
Tirei o título de uma missa do Palestrina. Até ele, a música tinha só duas dimensões, ritmo e melodia. A música moderna nasceu com Palestrina, principalmente em "Messa para o Papa Marcello", que ele compôs por encomenda, para homenagear o novo papa. Esse papa não foi importante, morreu moço e ficou poucos dias no papado.
A música de Palestrina introduziu o contraponto, dando uma terceira dimensão à música. A partir daí, a música ficou muito mais real, mais humana. Meu caso, nesse romance, será encontrar o meu contraponto. Como ainda não o encontrei, não escrevi o livro. O livro será uma tentativa de me entender. Eu nunca me entendi. E o romance será a declaração de que realmente é impossível me entender.

FOLHA - O sr. já disse que seus livros realmente importantes eram "Pessach", "O Ventre" e "Pilatos".
CONY -
É, eu só considero mesmo esses três. Não gosto do "Quase Memória". Gosto muito do "Ventre". E talvez em "Tijolo de Segurança" eu veja alguma coisa minha. Os outros considero livros de linha.

FOLHA - Mas por que "Pilatos" é o preferido?
CONY -
O "Quase Memória" qualquer um pode escrever. Pior ou melhor. Qualquer pessoa que resolva visitar a figura do pai pode fazê-lo. Agora, o "Pilatos" não.

FOLHA - Por quê?
CONY -
Porque precisa ter coragem para romper com a literatura e com a moral como eu fiz nesse livro. E não o fiz como uma declaração de princípios, de uma forma contestatória. O livro rompe com a moral naturalmente. Praticamente toda a literatura é contra a moral. Sartre, Machado de Assis, Balzac, todos contestaram a moral de seu tempo. Mas, até certo ponto, eles o fizeram como uma declaração de princípios. "Pilatos"" não tem moral nenhuma. O rompimento com a literatura, com o bom gosto, sai sem soar como pregação. O livro não tem mensagem. Os outros, Sartre, Flaubert, são panfletários da antimoral. Meu livro não é panfleto.

FOLHA - Na época da ditadura, "Pilatos" teve uma leitura política. A idéia de lavar as mãos...
CONY -
Eu lavei as mãos porque fiz minha obrigação. Quando veio o Golpe, critiquei, fui preso seis vezes. Não mudei o mundo, nem o Brasil, nem a mim mesmo. Mas adquiri coragem para fazer "Pilatos". Estava cansado de falar mal da ditadura. "Pilatos" não deixa de ser uma forma de mostrar que a ditadura faz com que os cidadãos fiquem castrados. Mas sem nenhum tom de panfleto, nem político, nem moral.

FOLHA - Por conta desse "cansaço", o sr. foi criticado e patrulhado.
CONY -
Sim. Muito patrulhado. A primeira edição de "Pilatos" teve 5.000 exemplares, que esgotaram rápido. A segunda encalhou porque houve uma onda contra o livro e contra mim. Mas eu estava bem na "Manchete" e viajando muito. Eu tive seis prisões, a "Manchete" foi minha sétima prisão. Uma prisão muito confortável. Agora, eu fui muito patrulhado, pela direita e pela esquerda.

FOLHA - Como você vê a crise que a esquerda vive hoje?
CONY -
Em 1964, numa das minhas crônicas contra o regime, nos primeiros dias de abril, falei que considerava a esquerda um grupo de imbecis, o que não impediu que eu tomasse uma atitude de esquerda. Muita gente pensou, então, que eu estava me entregando a uma posição de esquerda. Mas isso não era verdade.
Sempre pensei que não tinha disciplina para ser de esquerda. E não tinha idéias fixas para ser de direita. Não gosto do centro, porque o centro é oportunista. Então o que me sobra? Sobra ser um anarquista triste e inofensivo, é o que eu sou.

FOLHA - O sr. foi um crítico contundente tanto de Fernando Henrique Cardoso como tem sido de Lula. CONY - São dois governos diferentes na morfologia, mas, na sintaxe, são iguais. O Lula é pior que o FHC porque decepcionou. Quando foi eleito, mesmo as pessoas que não votaram nele achavam que ia acontecer alguma coisa de novo. E não aconteceu nada novo, aconteceu a coisa mais velha do mundo, que é a demagogia. O Fome Zero, um troço paternalista, assistencialista, o Estado não pode dar comida, tem que dar condições para que todos tenham comida.
O FHC fazia uma democracia mais sofisticada, mas no fundo era a mesma coisa. O grande mal dele foi ter optado pelo neoliberalismo. Mas ele não tapeou ninguém.
O Lula decepcionou, não só nas linhas básicas, por continuar o governo do FHC, como também se envolveu com corrupção. Houve corrupção no governo FHC, acho até que maior. O PT se comprometeu por migalhas. O governo Lula é provinciano até na corrupção.

FOLHA - Tanto FHC como Lula disputam a imagem de Juscelino Kubitschek. Qual deles leva?
CONY -
Nenhum. O JK era um homem provinciano. Ele queria fazer pontes, estradas. Era estadista sem saber. FHC pensou que era estadista e não era. E o Lula nem pensa nada. Não sabe nem o que é um estadista. JK prometeu obras sem querer mexer na estrutura da sociedade. Mas o desenvolvimento que essas obras propiciaram mexeu com o Brasil. Há um Brasil antes e depois de JK.

FOLHA - Como é hoje a sua relação pessoal com a religião?
CONY -
Tenho admiração por santos. Não por serem santos, mas pelos homens que foram. São José era noivo de uma menina de 15 anos, aí veio um anjo e disse: "Olha, tua noiva tá grávida, não esquenta a cabeça que você não entende isso". E ele aceitou, isso é sensacional.

FOLHA - Mas isso não seria mais uma admiração pela fábula do que pela santidade em si?
CONY -
Sim, talvez pela fábula. Ela é tão perfeita quanto o "Chapeuzinho Vermelho".

FOLHA - Você não reza nem acende velas?
CONY -
Não rezo, mas estou sempre acendendo velas. No geral, é difícil aceitar Deus, mas no plano da vida diária é mais fácil. Eu já senti uma mão especial, não digo que seja a mão de Deus, mas uma mão especial, algumas vezes sobre a minha vida, sobre o meu destino.

FOLHA - Em momentos de dificuldade?
CONY -
Não, em coisas prosaicas. Quando eu estive preso, não sentia mão nenhuma, sentia a mão do soldado que estava me algemando. Mas, às vezes, olho pra parede e sinto uma coisa superior a mim, a tudo o que eu penso, a tudo o que eu sou, a tudo o que eu podia ser e a tudo o que os outros são. Também não sou masoquista, quando digo que sou uma pessoa frágil, que não se entende. Eu sei que os outros também não se entendem. Mas eu proclamo isso abertamente, assim como proclamo que olho pra parede e vejo uma mão superior. Mas não aceito essa mão. Vejo e não aceito, porque minha cabeça recusa qualquer coisa sobrenatural.

FOLHA - Como é fazer parte da Academia Brasileira de Letras?
CONY -
Gosto do ambiente da ABL. Ela é o reverso da escola. Você vai para lá sem futuro, mas com o passado. Não precisa provar mais nada. Lá encontra as pessoas que têm uma vida, um passado. E o passado torna todo mundo amigo.

FOLHA - Você foi criticado em 2004, quando a Comissão de Anistia anunciou que você tinha direito a uma pensão de R$ 19.115,19 e a uma indenização de R$ 1,4 milhão [por ter sido perseguido pela ditadura]. Esse episódio foi superado?
CONY -
Primeiro, eu não sabia sobre o projeto da anistia. Um amigo me alertou, dei uma procuração e ele fez o dossiê que era necessário para requerer o benefício. Um dos três membros que estavam julgando disse: "Não preciso de dossiê, vou dar o direito à indenização". Deu no escuro, porque conhecia o caso. Tinha tudo nesse dossiê, a minha saída da TV Rio, os episódios em que tentaram sequestrar minhas filhas, a invasão do "Correio da Manhã". Eu perdi dois empregos. Diante desse material, eu pedi e me deram o benefício.
O Zé Dirceu foi perseguido, mas era estudante, não perdeu nada. O Gabeira também não perdeu nada. Eu estava no mercado de trabalho. Trabalhava no "Correio da Manhã" e na TV Rio. Tive de sobreviver com pseudônimo, fui considerado uma não-persona.

FOLHA - Isso acabou?
CONY -
Acabou por uma questão muito simples, porque ainda não ganhei nada.

FOLHA - Nada?
CONY -
Ainda está em trâmite o meu caso. Faz um ano e meio. Levei porrada sem ter o benefício. Mas tudo bem, não morri de fome nem vou morrer. Vou morrer de outra coisa.


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