São Paulo, quarta-feira, 25 de novembro de 2009

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MARCELO COELHO

Carnaval a bordo


Livro traz o "Navio Negreiro" de Castro Alves, ao lado de poema homônimo de Heine


POR MAIS que se reconheça a vocação humana para a atrocidade, sempre há alguma nova informação capaz de superar o já sabido. Sobre nazismo, nem se fala. O inimaginável nunca se esgota. O mesmo acontece com a escravidão. Imagens clássicas de um navio negreiro, por exemplo, fornecem sozinhas assunto para muitos pesadelos. Mas eu não sabia do pior a esse respeito. Leia-se este trecho.
"A marinha britânica passou a inspecionar os navios suspeitos de carregar africanos, e ela podia fazê-lo em alto mar, sem aviso prévio. Isso levou ao desenvolvimento de uma curiosa tecnologia (...): um fundo falso nos porões dos navios. Caso os fiscais ingleses se aproximassem, ele funcionava como um alçapão, jogando no fundo do mar toda a sua carga -de homens vivos. Desse modo, os traficantes conseguiam fugir à punição que lhes seria imposta."
É impossível não visualizar de imediato a cena, que, ao mesmo tempo, foge de nossos olhos, numa vertigem. Seria preciso um Spielberg para filmá-la. Estava dizendo que navios negreiros dão assunto para pesadelos, mas isso não é muito verdade no meu caso. Tive sonhos péssimos com escravidão uma ou duas vezes; os de nazismo são mais frequentes. O cinema e a televisão não deixam ninguém se esquecer daquilo.
Claro que não é o caso de competir entre dois horrores. Mas talvez a imagem desse alçapão mortal venha ao caso -as vítimas submersas, com seus gritos inaudíveis, representariam quase que uma memória recalcada, que vai aos poucos voltando à tona em sua totalidade.
A passagem que citei está no livro "Navios Negreiros", organizado por Priscila Figueiredo, para o selo "Comboio de Corda" (ed. SM), voltado ao público infanto-juvenil. O livro traz o célebre poema de Castro Alves e um outro, com o mesmo título, do poeta Heinrich Heine (1797-1856), numa ótima tradução de Priscila Figueiredo e Luiz Repa, ao lado do original em alemão.
Em matéria de memória, o "Navio Negreiro" de Castro Alves se sai bem. É dos poucos poemas brasileiros que, uma vez lidos, ficam para sempre na cabeça da gente.
Não só pelo famoso verso do auriverde pendão da minha terra, "que a brisa do Brasil beija e balança". É tão bonito que só agora, relendo, sinto um solavanco sintático na ideia toda: esse "do Brasil", a rigor, estaria sobrando na frase, uma vez que o poeta acabava de se referir à "minha terra"... Ou será que o quase pleonasmo justamente serve para acentuar o escândalo, a revolta patriótica do autor?
Outros trechos são memoráveis sem ter muito a ver, na verdade, com o tema da escravidão. Por exemplo, aqueles sobre um marinheiro italiano que "relembra os versos do Tasso/ Junto às lavas do vulcão"; ou a descrição da Inglaterra, "navio/ que Deus na Mancha ancorou".
É como se Castro Alves não se restringisse ao espetáculo monstruoso da escravidão -dos negros dançando grotescamente no convés- e quisesse contrastá-lo com paisagens e evocações mais "românticas" e notáveis a seu modo. Vem daí certo desajeitamento nas transições -do encantamento ao choque, do pitoresco ao retórico-, que precisam de um bom declamador para funcionarem direito.
Com Heine, o tom não muda: é de uma ironia feroz. Incorporam-se numa coisa só os contrastes que Castro Alves dispunha lado a lado, com alternância teatral.
O foco se concentra nos problemas do comandante do navio. Os negros estão morrendo a uma taxa maior do que a prevista. É necessário zelar por sua saúde, sob pena de perder-se o lucro da viagem. O médico de bordo pondera: "Há mortes por melancolia,/ porque se enfadam fortemente./ Um pouco de ar, música e dança/ e a enfermidade ninguém sente".
Promove-se, então, um carnaval a bordo, estimulado naturalmente pelos estalos do chicote. A mesma cena é descrita nos versos de Castro Alves, mas não sabemos se a dança é metafórica ou literal. Em Heine, vemos que o absurdo acontece de fato: a proposta do médico de bordo é levada à prática. É entendida, ao mesmo tempo, como medida "útil" e como farsa desesperada e perversa.
Alguns relatos de campos de concentração nazistas dão conta, aliás, de cenas semelhantes -bailes e orquestras organizados pelos carrascos. Dito assim, nesta última frase neutra, deve-se reconhecer que a iniciativa nada tem de incomum.

coelhofsp@uol.com.br


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