São Paulo, quarta, 25 de novembro de 1998

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O teatro como espetáculo principal

MARCELO COELHO

da Equipe de Articulistas

Um grampo telefônico derrubou o ministro Mendonça de Barros. Esse é o fato jornalístico, sem enfeites nem exageros. Mas eu gostaria de enfeitar e exagerar um pouco: o que derrubou o ministro foi o discurso do senador Pedro Simon.
Talvez, no futuro, quando estivermos todos bem velhos, alguém diga de nossa época aquilo que sempre ouvimos dizer das épocas passadas: "Naquele tempo havia grandes oradores... naquele tempo o Congresso funcionava... havia cultura e ardor republicano...".
Ficções de historiador, por certo. Mas sem essas ficções a história não teria muita graça, nem serviria como crítica do presente.
A sessão do Senado para ouvir os esclarecimentos do ministro foi retransmitida várias vezes pela TV. Mais do que um bom discurso, o que Pedro Simon fez ali foi um espetáculo teatral. Antes dele, o senador Jáder Barbalho tinha dado um exemplo de sobriedade, com perguntas objetivas sobre o caso.
Mas quem queria saber de esclarecimentos? Pedro Simon não queria; disse mesmo que Mendonça de Barros poderia passar a vida explicando o assunto (que assunto mesmo?) e nunca se chegaria a conclusão nenhuma.
O que é o ágio da Telenorte ou a pré-qualificação do consórcio X no edital Y perto da grande tormenta que se preparava à frente do microfone? Seria como investigar estatísticas sobre a agricultura italiana momentos antes da erupção do Vesúvio. Pedro Simon não se lembrava nem sequer do nome de Pérsio Arida.
A fumaça, em grandes rolos, toldava o horizonte. Já não havia o que esclarecer. No semicírculo do Senado, as poltronas azuis pareciam há pouco compor uma baía remansosa, ordenada, regimental e aprazível -e o próprio ACM tinha ares meridionais, um tédio de vilegiatura, uma "dolcezza" de príncipe tomando limonada em Capri. Mas não! Tudo se transformou no teatro da fúria flamívoma, dos acessos, dos engasgos, dos arcos fulgurantes de lava, dos jatos pirotécnicos de Pedro Simon.
A chuva de meteoritos que atingiu o planeta na semana passada foi, como se sabe, bem modesta, e poucos dentre nós a viram; mas a cúpula do Senado por um triz não se estatela diante de tal irrupção oratória. Pedro Simon tinha gestos de afogado, como se estivesse a submergir no seu discurso. O microfone, junco frágil em pleno maremoto, fugia-lhe ao alcance. O senador girava; era seu próprio redemoinho.
Lido, sem o aparato do improviso, o discurso provavelmente teria pouco impacto. Sua estrutura é conhecida -imita a fala de Marco Antônio no "Júlio César" de Shakespeare. O ministro é um homem de bem. O ministro é um homem honrado. Admiro o ministro. Gosto do ministro: é o que dizia, ao fim de cada estrofe arrasadora, e como que recuperado de um surto demencial, o senador.
Mas é isto o que havia de especificamente teatral em todo o discurso. A graça da coisa estava em ver, depois de cada acesso de fúria aparentemente incontrolável, o orador de volta a um tom de voz ponderado, tranquilíssimo. Era o dono da ilusão que provocava.
Como todo virtuose, Pedro Simon denunciava o próprio virtuosismo, tinha prazer em mostrar com quanto de puro truque e técnica era feita a tempestade que conjurou.
Como todo virtuose, aliás, ele sabe que isso não importa, pois o segredo do teatro é mesmo a "suspensão da descrença" de que fala Coleridge. Sabemos que é ilusão, mas acreditamos ainda assim; tanto melhor se, seguro dos seus poderes, o ator se dá ao luxo de explicitar o artifício.
E toda a descrença, em estado de suspensão, terminou caindo sobre a cabeça de Mendonça de Barros e seus amigos.

Por falar em teatro, fui chegando a uma conclusão antipática -não, não é bem uma conclusão, é mais uma dúvida, aqui vai: tenho a impressão de que atualmente foi-se consolidando um estilo de encenação que, em vez de servir para provocar emoções no público, funciona apenas para os atores dar conta das suas.
Quando vejo um monte de rapazes e moças sem roupa e sem técnica dançando ao som de uma batucada (em geral há batucadas apoteóticas ao fim desse gênero de peças), é como se a grande catarse tivesse acontecido no palco, não na platéia.
"Pobre espectador! É um caso perdido... por que não se diverte como nós? Maldito espectador! Nem à força ele participa de nossa revolução... que se dane." Muitos espetáculos se tornam, assim, nada mais do que uma espécie de proselitismo frustrado, de "happening" amador.
"Cacilda!", de Zé Celso, supera definitivamente esse problema. Temos aqui um elogio do teatro, uma confiança no poder do teatro, uma esperança no teatro, que foge do imediatismo e da auto-referência.
Não há, aqui, a mímica da revolução antropofágica ou que nome tenha, mas uma outra espécie de ritual, muito amoroso e sereno. A vida de Cacilda Becker, as peças de que participou e a própria arte teatral são invocadas de forma elegíaca.
Claro que não falta vibração e transe -mas aqui, com atrizes de primeira grandeza, com uma colagem engenhosa de referências, com a emoção contida para explodir no momento certo, o dionisíaco e o apolíneo entram em acordo.
Não há a pura exacerbação do dionisíaco, nem a ideologia do dionisíaco, mas sim uma tomada de distância, uma religiosidade muito depurada, que tornam "Cacilda!" um espetáculo belíssimo e comovente.
Uma emoção calculada, um prazer para o intelecto e momentos de puro teatro (poucos recursos, mas como que uma paralisação do tempo numa ou noutra cena memorável) é o que também se pode encontrar em "O Nome do Sujeito", espetáculo da Companhia do Latão em cartaz no teatro Eugênio Kusnet. A peça joga com a história de Fausto, transposta para a realidade brasileira no período da escravidão.
Poderia ser um samba do crioulo doido, mas é exatamente o oposto disso. Foge-se da carnavalização, do didatismo, da vontade de juntar tudo com tudo e mais alguma coisa. Tem-se um espetáculo inteligente, com uma narrativa sofisticada e grande controle do que acontece em cena.
Talvez esteja passando o período em que falar da confusão brasileira era apenas um subterfúgio para justificar a nossa própria confusão mental, em que a expressão de nosso estado "barroco" e "tropical" era pretexto para não querer entender coisa nenhuma e fazer festa com nossa tragédia. Um pouco de razão nunca faz mal a ninguém -nem ao teatro.



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