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O teatro como espetáculo principal
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Um grampo telefônico derrubou o ministro Mendonça de
Barros. Esse é o fato jornalístico,
sem enfeites nem exageros. Mas
eu gostaria de enfeitar e exagerar um pouco: o que derrubou o
ministro foi o discurso do senador Pedro Simon.
Talvez, no futuro, quando estivermos todos bem velhos, alguém diga de nossa época aquilo que sempre ouvimos dizer
das épocas passadas: "Naquele
tempo havia grandes oradores...
naquele tempo o Congresso funcionava... havia cultura e ardor
republicano...".
Ficções de historiador, por
certo. Mas sem essas ficções a
história não teria muita graça,
nem serviria como crítica do
presente.
A sessão do Senado para ouvir
os esclarecimentos do ministro
foi retransmitida várias vezes
pela TV. Mais do que um bom
discurso, o que Pedro Simon fez
ali foi um espetáculo teatral.
Antes dele, o senador Jáder Barbalho tinha dado um exemplo
de sobriedade, com perguntas
objetivas sobre o caso.
Mas quem queria saber de esclarecimentos? Pedro Simon
não queria; disse mesmo que
Mendonça de Barros poderia
passar a vida explicando o assunto (que assunto mesmo?) e
nunca se chegaria a conclusão
nenhuma.
O que é o ágio da Telenorte ou
a pré-qualificação do consórcio
X no edital Y perto da grande
tormenta que se preparava à
frente do microfone? Seria como
investigar estatísticas sobre a
agricultura italiana momentos
antes da erupção do Vesúvio.
Pedro Simon não se lembrava
nem sequer do nome de Pérsio
Arida.
A fumaça, em grandes rolos,
toldava o horizonte. Já não havia o que esclarecer. No semicírculo do Senado, as poltronas
azuis pareciam há pouco compor uma baía remansosa, ordenada, regimental e aprazível
-e o próprio ACM tinha ares
meridionais, um tédio de vilegiatura, uma "dolcezza" de
príncipe tomando limonada em
Capri. Mas não! Tudo se transformou no teatro da fúria flamívoma, dos acessos, dos engasgos, dos arcos fulgurantes de lava, dos jatos pirotécnicos de Pedro Simon.
A chuva de meteoritos que
atingiu o planeta na semana
passada foi, como se sabe, bem
modesta, e poucos dentre nós a
viram; mas a cúpula do Senado
por um triz não se estatela
diante de tal irrupção oratória.
Pedro Simon tinha gestos de
afogado, como se estivesse a
submergir no seu discurso. O
microfone, junco frágil em pleno maremoto, fugia-lhe ao alcance. O senador girava; era seu
próprio redemoinho.
Lido, sem o aparato do improviso, o discurso provavelmente
teria pouco impacto. Sua estrutura é conhecida -imita a fala
de Marco Antônio no "Júlio César" de Shakespeare. O ministro
é um homem de bem. O ministro é um homem honrado. Admiro o ministro. Gosto do ministro: é o que dizia, ao fim de
cada estrofe arrasadora, e como
que recuperado de um surto demencial, o senador.
Mas é isto o que havia de especificamente teatral em todo o
discurso. A graça da coisa estava em ver, depois de cada acesso
de fúria aparentemente incontrolável, o orador de volta a um
tom de voz ponderado, tranquilíssimo. Era o dono da ilusão
que provocava.
Como todo virtuose, Pedro Simon denunciava o próprio virtuosismo, tinha prazer em mostrar com quanto de puro truque
e técnica era feita a tempestade
que conjurou.
Como todo virtuose, aliás, ele
sabe que isso não importa, pois
o segredo do teatro é mesmo a
"suspensão da descrença" de
que fala Coleridge. Sabemos
que é ilusão, mas acreditamos
ainda assim; tanto melhor se,
seguro dos seus poderes, o ator
se dá ao luxo de explicitar o artifício.
E toda a descrença, em estado
de suspensão, terminou caindo
sobre a cabeça de Mendonça de
Barros e seus amigos.
Por falar em teatro, fui chegando a uma conclusão antipática -não, não é bem uma
conclusão, é mais uma dúvida,
aqui vai: tenho a impressão de
que atualmente foi-se consolidando um estilo de encenação
que, em vez de servir para provocar emoções no público, funciona apenas para os atores dar
conta das suas.
Quando vejo um monte de rapazes e moças sem roupa e sem
técnica dançando ao som de
uma batucada (em geral há batucadas apoteóticas ao fim desse gênero de peças), é como se a
grande catarse tivesse acontecido no palco, não na platéia.
"Pobre espectador! É um caso
perdido... por que não se diverte
como nós? Maldito espectador!
Nem à força ele participa de
nossa revolução... que se dane."
Muitos espetáculos se tornam,
assim, nada mais do que uma
espécie de proselitismo frustrado, de "happening" amador.
"Cacilda!", de Zé Celso, supera definitivamente esse problema. Temos aqui um elogio do
teatro, uma confiança no poder
do teatro, uma esperança no
teatro, que foge do imediatismo
e da auto-referência.
Não há, aqui, a mímica da revolução antropofágica ou que
nome tenha, mas uma outra espécie de ritual, muito amoroso e
sereno. A vida de Cacilda Becker, as peças de que participou e
a própria arte teatral são invocadas de forma elegíaca.
Claro que não falta vibração e
transe -mas aqui, com atrizes
de primeira grandeza, com uma
colagem engenhosa de referências, com a emoção contida para explodir no momento certo, o
dionisíaco e o apolíneo entram
em acordo.
Não há a pura exacerbação do
dionisíaco, nem a ideologia do
dionisíaco, mas sim uma tomada de distância, uma religiosidade muito depurada, que tornam "Cacilda!" um espetáculo
belíssimo e comovente.
Uma emoção calculada, um
prazer para o intelecto e momentos de puro teatro (poucos
recursos, mas como que uma
paralisação do tempo numa ou
noutra cena memorável) é o
que também se pode encontrar
em "O Nome do Sujeito", espetáculo da Companhia do Latão
em cartaz no teatro Eugênio
Kusnet. A peça joga com a história de Fausto, transposta para
a realidade brasileira no período da escravidão.
Poderia ser um samba do
crioulo doido, mas é exatamente o oposto disso. Foge-se da carnavalização, do didatismo, da
vontade de juntar tudo com tudo e mais alguma coisa. Tem-se
um espetáculo inteligente, com
uma narrativa sofisticada e
grande controle do que acontece em cena.
Talvez esteja passando o período em que falar da confusão
brasileira era apenas um subterfúgio para justificar a nossa
própria confusão mental, em
que a expressão de nosso estado
"barroco" e "tropical" era pretexto para não querer entender
coisa nenhuma e fazer festa
com nossa tragédia. Um pouco
de razão nunca faz mal a ninguém -nem ao teatro.
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