São Paulo, Sábado, 25 de Dezembro de 1999


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RESENHA DA SEMANA

Um destino radical

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Alguns poemas são assim: você recebe o livro, lê e relê os versos à cata de um sentido. Não é fácil, mas você insiste. Acha que entendeu alguma coisa. Põe o livro de lado e o esquece em cima da mesa. Meses depois, você reabre o mesmo livro ao acaso e, também por um feliz acaso, relê pela enésima vez um dos poemas. E pela primeira vez, como um raio, você o entende. Não mais como achava que o havia entendido. Você o entende de tal forma que não consegue mais explicá-lo. E não pode haver maior alegria.
Os poemas de José Tolentino Mendonça são assim. Diferentemente da "poesia intransitiva" a que João Cabral se referia no seu sintético "Anti-Char", são poemas que estão dizendo alguma coisa, e que tentam dizer as "coisas nuas".
Não são balbucios vazios. Também não são lugares-comuns ou idéias quaisquer: "O que mais nos distancia/ é o desejo profano de compreensão/ a nenhum vocábulo a beleza/ confia sua verdade perfeita" ("Duas cidades, S. Paulo", incluído na coletânea "Baldios", recém-lançada pela Assírio e Alvim, de Lisboa). Querem dizer o que não pode ser dito, e o dizem numa aproximação em círculos, por cercos. Definem o âmago pelo contorno. Por isso não é fácil reconhecê-los.
Para complicar mais as coisas, esses poemas evitam as distrações de uma modernidade fácil: as "pegadinhas", as tiradas mais evidentes da forma. São versos aparentemente simples. Numa leitura impaciente, podem até parecer antigos. Não é que lhes falte ironia, mas são anticínicos. Não há reconhecimento fácil ou citações descaradas. Nenhuma desculpa. São como atos inaugurais. Não há pegadas a seguir nesse caminho, nenhuma pista. É o leitor que tem de desbravá-lo sozinho. São sempre suas as primeiras pegadas dessa trilha.
Como na melhor poesia, é preciso dar tempo ao tempo para entendê-la. É preciso lutar com esses versos até cair ("Os versos assemelham-se a um corpo/ quando cai/ ao tentar de escuridão a escuridão/ a sua sorte"), e depois esquecê-los sobre a mesa. É preciso deixar-se nocautear por eles: "Ainda espero o amor/ como no ringue o lutador caído/ espera a sala vazia", diz a primeira estrofe de "Sobre um Improviso de John Coltrane", também em "Baldios".
José Tolentino Mendonça nasceu há 34 anos na ilha da Madeira. Publicou quatro livros de poemas, além de ensaios e traduções (entre as quais, o "Cântido dos Cânticos", pela editora Cotovia). Uma amostra de seus poemas foi incluída na "Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea" (editora Lacerda). Além de ser um dos poetas portugueses mais interessantes da nova geração, Tolentino Mendonça é padre (foi ordenado aos 25 anos), o contrário da modernidade aos olhos da maioria dos brasileiros com a mesma idade dele. Mas um padre que é fã de Pasolini e dos Tindersticks, a banda pop inglesa que inspira, aliás, um dos poemas do livro.
Em entrevista publicada na Folha, em abril deste ano, Tolentino Mendonça dizia sobre a vocação religiosa: "É um ato único. Acho não poderia ser padre sem ser poeta e não poderia ser poeta sem ser padre. É uma radicalidade. Sei que é espantoso e choca, mas é um destino radical. (...) O Pasolini me ensinou que a poesia é a arte de resistir ao seu tempo, um manual de inquietações. (...) A contradição é o que liberta mais energia. Se a gente não aceita a via do paradoxo, não inventa pensamento nem poesia. É desses paradoxos que as coisas surgem. Sou padre e sou cristão não para me instalar numa crença, mas para me aventurar num caminho que se refaz continuamente. (...) Não sou um poeta católico. Os atributos perderam-se. As coisas valem no seu anonimato, mais por si, pela sua radicalidade. Elas estão nuas".
Seus poemas são resíduos dessa vontade de despir as coisas, de vê-las finalmente em toda a sua radicalidade, para então lhes procurar novos sentidos. Não há o menor vestígio de resignação. São a busca de uma pluralidade de sentidos na tentativa de não deixar o corpo se reduzir a mero "corpo de morte".
E daí que abrem um ciclo dinâmico e paradoxal em que só se pode realmente dizer o que não pode ser dito. Há em "Baldios", por exemplo, um poema sobre uma mulher que "prezava apenas os segredos que mesmo ditos/ permanecem como segredos". A mesma que "tinha por hábito acender fogueiras/ de que, depois, se esquecia".
Tolentino Mendonça escreve poemas como quem diz segredos para mantê-los, paradoxalmente, como segredos. Não é à toa que é impossível explicar esses poemas quando afinal achamos que os entendemos ("há uma altura, creio um dia em que se acorda/ e se percebe tudo") e sentimos a alegria de conhecer o segredo sem poder revelá-lo.

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Livro: Baldios
Autor: José Tolentino Mendonça
Editora: Assírio e Alvim
Quanto: 1.750 escudos (80 págs.)
Onde encomendar: Livraria Portugal (r. Genebra, 165, tel. (0/xx/ 11/3104-1748)



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