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RESENHA DA SEMANA
Um destino radical
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Alguns poemas são assim:
você recebe o livro, lê e relê os
versos à cata de um sentido.
Não é fácil, mas você insiste.
Acha que entendeu alguma
coisa. Põe o livro de lado e o esquece em cima da mesa. Meses
depois, você reabre o mesmo livro ao acaso e, também por um
feliz acaso, relê pela enésima
vez um dos poemas. E pela primeira vez, como um raio, você
o entende. Não mais como
achava que o havia entendido.
Você o entende de tal forma
que não consegue mais explicá-lo. E não pode haver maior
alegria.
Os poemas de José Tolentino
Mendonça são assim. Diferentemente da "poesia intransitiva" a que João Cabral se referia
no seu sintético "Anti-Char",
são poemas que estão dizendo
alguma coisa, e que tentam dizer as "coisas nuas".
Não são balbucios vazios.
Também não são lugares-comuns ou idéias quaisquer: "O
que mais nos distancia/ é o desejo profano de compreensão/
a nenhum vocábulo a beleza/
confia sua verdade perfeita"
("Duas cidades, S. Paulo", incluído na coletânea "Baldios",
recém-lançada pela Assírio e
Alvim, de Lisboa). Querem dizer o que não pode ser dito, e o
dizem numa aproximação em
círculos, por cercos. Definem o
âmago pelo contorno. Por isso
não é fácil reconhecê-los.
Para complicar mais as coisas, esses poemas evitam as distrações de uma modernidade
fácil: as "pegadinhas", as tiradas mais evidentes da forma.
São versos aparentemente simples. Numa leitura impaciente,
podem até parecer antigos.
Não é que lhes falte ironia, mas
são anticínicos. Não há reconhecimento fácil ou citações
descaradas. Nenhuma desculpa. São como atos inaugurais.
Não há pegadas a seguir nesse
caminho, nenhuma pista. É o
leitor que tem de desbravá-lo
sozinho. São sempre suas as
primeiras pegadas dessa trilha.
Como na melhor poesia, é
preciso dar tempo ao tempo
para entendê-la. É preciso lutar
com esses versos até cair ("Os
versos assemelham-se a um
corpo/ quando cai/ ao tentar de
escuridão a escuridão/ a sua
sorte"), e depois esquecê-los
sobre a mesa. É preciso deixar-se nocautear por eles: "Ainda
espero o amor/ como no ringue
o lutador caído/ espera a sala
vazia", diz a primeira estrofe de
"Sobre um Improviso de John
Coltrane", também em "Baldios".
José Tolentino Mendonça
nasceu há 34 anos na ilha da
Madeira. Publicou quatro livros de poemas, além de ensaios e traduções (entre as
quais, o "Cântido dos Cânticos", pela editora Cotovia).
Uma amostra de seus poemas
foi incluída na "Antologia da
Poesia Portuguesa Contemporânea" (editora Lacerda). Além
de ser um dos poetas portugueses mais interessantes da nova
geração, Tolentino Mendonça
é padre (foi ordenado aos 25
anos), o contrário da modernidade aos olhos da maioria dos
brasileiros com a mesma idade
dele. Mas um padre que é fã de
Pasolini e dos Tindersticks, a
banda pop inglesa que inspira,
aliás, um dos poemas do livro.
Em entrevista publicada na
Folha, em abril deste ano, Tolentino Mendonça dizia sobre a
vocação religiosa: "É um ato
único. Acho não poderia ser
padre sem ser poeta e não poderia ser poeta sem ser padre. É
uma radicalidade. Sei que é espantoso e choca, mas é um destino radical. (...) O Pasolini me
ensinou que a poesia é a arte de
resistir ao seu tempo, um manual de inquietações. (...) A
contradição é o que liberta
mais energia. Se a gente não
aceita a via do paradoxo, não
inventa pensamento nem poesia. É desses paradoxos que as
coisas surgem. Sou padre e sou
cristão não para me instalar
numa crença, mas para me
aventurar num caminho que se
refaz continuamente. (...) Não
sou um poeta católico. Os atributos perderam-se. As coisas
valem no seu anonimato, mais
por si, pela sua radicalidade.
Elas estão nuas".
Seus poemas são resíduos
dessa vontade de despir as coisas, de vê-las finalmente em toda a sua radicalidade, para então lhes procurar novos sentidos. Não há o menor vestígio
de resignação. São a busca de
uma pluralidade de sentidos na
tentativa de não deixar o corpo
se reduzir a mero "corpo de
morte".
E daí que abrem um ciclo dinâmico e paradoxal em que só
se pode realmente dizer o que
não pode ser dito. Há em "Baldios", por exemplo, um poema
sobre uma mulher que "prezava apenas os segredos que mesmo ditos/ permanecem como
segredos". A mesma que "tinha
por hábito acender fogueiras/
de que, depois, se esquecia".
Tolentino Mendonça escreve
poemas como quem diz segredos para mantê-los, paradoxalmente, como segredos. Não é à
toa que é impossível explicar
esses poemas quando afinal
achamos que os entendemos
("há uma altura, creio um dia
em que se acorda/ e se percebe
tudo") e sentimos a alegria de
conhecer o segredo sem poder
revelá-lo.
Avaliação:
Livro: Baldios
Autor: José Tolentino Mendonça
Editora: Assírio e Alvim
Quanto: 1.750 escudos (80 págs.)
Onde encomendar: Livraria
Portugal (r. Genebra, 165, tel. (0/xx/
11/3104-1748)
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