São Paulo, sábado, 25 de dezembro de 2004

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Anjo exterminador

France Presse
Cena de "The Heart Is Deceitful Above All Things", longa-metragem de Asia Argento já exibido no Festival de Cannes deste ano e baseado em livro de JT LeRoy


Escritor JT LeRoy fala à Folha com exclusividade e lança livros sobre sua infância na prostituição

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

Mulheres gritam, falam besteira, empurram umas às outras, brigam, dão risada. Todas vestem roupas curtas, maquiagem carregada, perfume barato. O local é o estacionamento de um posto de gasolina para caminhoneiros, à beira de uma estrada do sul norte-americano, a tal América Profunda, mas poderia ser Bauru, Pretória ou Milão. Elas estão atrás de clientes, os motoristas dos caminhões, que escolhem a companhia, pagam e fazem sexo ali mesmo, na cabine em que passarão as próximas 20 horas.
Entre as prostitutas se destaca Sarah, falsa loira, astuta, perigosa, que traz no pescoço o osso de um pênis de um guaxinim, mamífero carnívoro conhecido no Brasil como mão-pelada. O amuleto, acreditam as mulheres que se vendem aos caminhoneiros, dá grande poder afrodisíaco e sorte a quem o usa. Sarah também se destaca das outras por ter quase sempre a seu lado uma menina, falsa loira como ela, de 12 anos, se tanto. É Cherry Vanilla, que também se prostitui e participa dos programas dela, Sarah, sua mãe.
A menina na verdade é Jeremiah, um garoto, e sua história só ficou conhecida porque ele se tornou o escritor JT LeRoy, franzino, andrógino, recluso como J.D. Salinger, cercado de mistérios como Thomas Pynchon, que anda soterrado por uma peruca loira e óculos escuros imensos como Andy Warhol e debaixo de um chapéu como Truman Capote. Ele vive num prédio invadido de San Francisco, perto da Mission Street, onde milhares de sem-teto se encontram. Muitos são amigos dele, que também já foi um.
J (de Jeremiah) T (de Terminator, seu antigo apelido, tirado do Exterminador do Futuro da cinessérie com Arnold Schwarzenegger, hoje governador do Estado) LeRoy ou Le Roy, que pode ou não ser seu nome de família verdadeiro, 24 anos, foi levado pelas autoridades municipais a um psiquiatra aos 14 anos. "Escreva", lhe disse o doutor, como maneira de atenuar as vozes que ele ouvia constantemente. "Escreva o que as vozes lhe dizem."
Ele seguiu as recomendações médicas, como conta em entrevista exclusiva à Folha (leia texto nesta página).
O resultado foi seu primeiro livro, o mezzo-autobiográfico, mezzo-ficção "Sarah", lançado em abril de 2000 (Bloomsbury, inédito no Brasil, assim como toda a obra de LeRoy), em que o narrador é um menino de 12 anos que idolatra a mãe, uma "lagarta do estacionamento", como são conhecidas as prostitutas. Logo ele assume o nome da mãe e está fazendo tanto sucesso quanto ela, adotado pelo cafetão, Glading Grateful ETC, que depois o perde numa briga para o rival LeLoup.
Então veio "The Heart Is Deceitful Above All Things" (O Coração É Enganador Acima de Todas as Coisas, da mesma editora), lançado em 2001, na verdade uma colagem de textos, que têm em comum um mesmo narrador, agora com 16 anos, em que o autor deixa escapar mais detalhes de sua vida. Abandonado pela mãe, ainda uma menor, Jeremiah viveu com avôs ultra-religiosos sulistas até que Sarah completou 18 anos e voltou para pegá-lo.
Para sustentar seu vício de heroína, ela se prostituía, ora para traficantes, ora para caminhoneiros. Como temesse que uma presença masculina fosse atrapalhar os negócios, Sarah faz com que seu filho se vista de mulher e o apresenta ora como sua filha, ora como sua irmã. Logo, a "menina" está vivendo o mesmo mundo da mãe, que se divide entre as drogas, a prostituição e o ocasional abuso sexual. Ele consegue escapar de tudo isso no começo da adolescência, quando vai viver nas ruas e é descoberto por uma assistente social -daí o psiquiatra, o conselho, os livros.
A história ainda não terminou, mas tem um meio quase feliz. JT LeRoy foi descoberto pelo mundo cultural norte-americano. Por sua reclusão e aversão a falar com jornalistas, os críticos literários a princípio duvidaram de sua existência, e a autoria dos livros chegou a ser atribuída a diversos escritores de renome. O que mais chamou a atenção é a maneira "pura", quase infantil, mas impregnada de lirismo com que o narrador sem nome conta os detalhes mais sórdidos de sua vida.
Revistas como "Spin" e "I-D" o chamaram para que fizesse entrevistas e perfis de músicos como Billy Corgan e Courtney Love. Ele montou sua banda, THISTLE LLC, foi considerado uma das cem pessoas mais influentes do rock pela britânica "Kerrang!" e Marilyn Manson fez uma música dedicada a ele. O cineasta Gus van Sant pediu que ele desenvolvesse o roteiro original que viraria depois o polêmico "Elefante", e "The Heart Is Deceitful Above All Things" virou um longa pelas mãos de Asia Argento, que interpreta o papel da mãe, e foi exibido pela primeira vez em Cannes em maio deste ano.
A concorrida entrevista coletiva do festival de cinema francês, à qual o escritor compareceu depois de uma noite de pedidos de Argento, que virou sua amiga, foi LeRoy em seu estado mais puro: de peruca, óculos e chapéu, ele falou aos jornalistas de costas, agachado atrás da bancada onde estavam os outros membros da produção. Pesado, polêmico, o filme ainda não encontrou distribuidor nos EUA, mas começa a estrear em capitais européias. Além disso, "Sarah" está sendo adaptado para o cinema.
Agora, o escritor acaba de lançar "Harold's End", cujo título dúbio pode ser lido como o fim de Harold ou a bunda de Harold, no caso uma lesma de quem o narrador, um prostituto adolescente, fica amigo. E prepara um novo livro para o ano que vem, cujo tema ele não revela. JT LeRoy vive com o casal Astor e Speedie e o filhinho deles, Thor. E parece estar levando a vida com bom humor. No site que mantém, colocou um link para uma certa Martha Keith. Ela vende os tais colares de ossos de pênis de guaxinim. Para dar sorte.


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