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FERREIRA GULLAR
Um Natal diferente
Naquele ano de 1968, passei o Natal em cana.
Não diria que foi um Natal festivo, mas, dentro das possibilidades, eu e meus companheiros de
prisão tratamos de fazer jus à data, gozando a situação em que
nos encontrávamos. No nosso xadrez -o X 3- havia oito presos,
Paulo Francis, eu e mais seis; no
xadrez ao lado, estavam, além de
Caetano Veloso e Gilberto Gil, vários jovens, entre os quais um que
se chamava Perfeito Fortuna, o líder deles. Pela grade da janela,
que dava para os fundos da prisão, nos comunicávamos com
nossos vizinhos que não paravam
de inventar encrencas e cantar. Já
minha preocupação era por ordem em nosso convívio e achar
um jeito de encher o tempo. Daí
ter proposto que cada um contasse coisas interessantes de sua vida, relacionadas ou não com a luta política.
Uma das figuras mais curiosas
do grupo era um sujeito alto e ossudo que se chamava Antônio
Calado, homônimo do escritor e
que, devido a isso, tinha sido preso. Quando soube que eu conhecia o romancista, implorou-me
para dizer aos militares que ele
não era o outro Callado. Mas como atendê-lo se até aquele momento estávamos todos incomunicáveis? Quando, dias depois, fomos levados um a um ao interrogatório, pude fazer o que me pedira. Disse maldosamente ao oficial
que me interrogava: "Ele se parece tanto com o escritor Antônio
Callado quanto um jabuti se parece com um lápis". O oficial me
fitou irritado mas, no dia seguinte, mandou soltá-lo.
Fui preso no dia 13 de dezembro, em minha casa, no começo
da noite, por um oficial do Exército, que se tornou mais tarde conhecido como um dos chefes do
jogo do bicho no Rio de Janeiro: o
capitão Guimarães. Eu e Teresa
estávamos nos preparando para
ir ao cinema, junto com Vianinha, João das Neves e Pichín Plá,
nossos companheiros do Grupo
Opinião. João e Pichín já haviam
chegado. Quando soou a campainha da porta, fui abrir pensando
que era o Vianinha, mas deparei-me com dois soldados do Exército.
- É aqui que mora o senhor
Ferreira Gullar?
- Do que se trata?
- É o senhor?
- Sou eu mesmo, mas do que
se trata?
- Tenho um ordem de prisão
contra o senhor -disse o capitão,
forçando a entrada.
Neste instante, Teresa chegou à
sala. Ao tomar conhecimento da
situação, perguntou ao oficial.
- O senhor tem uma ordem de
prisão?
- A ordem é verbal. Ele está
preso.
- Mas isso é ilegal, disse ela.
A televisão estava ligada e nela
apareceu a figura do ministro da
Justiça lendo um documento.
- Escute, falou o capitão,
apontando para a televisão.
O ministro lia o Ato Institucional n.º.5, que suspendia todos os
direitos constitucionais do cidadão. João das Neves e Pichín Plá
assistiam àquilo apavorados, temendo que sobrasse para eles, já
que estávamos todos num mesmo
barco. Nossa preocupação era
agora com o Vianinha, que poderia estar sendo procurado também.
- Vamos inspecionar a casa,
disse o capitão, e se encaminhou
para o corredor.
João e Pichín aproveitaram para dar o fora.
- Fiquem esperando pelo Vianinha lá embaixo e avisem a ele,
adverti eu.
Os dois saíram. Eu entrei na cozinha, abri a geladeira e joguei
dentro dela minha caderneta de
endereços, a fim de que não caísse
nas mãos dos milicos. Em seguida, sussurrei a Teresa que, depois
que me levassem, telefonasse para
Mário Cunha, na sucursal do "Estadão", informando de minha
prisão.
Enquanto isso, eles vasculhavam a casa mas, ao tentarem entrar no quarto dos meninos, Luciana, minha filha, que tinha então 13 anos, os impediu e fechou-se no quarto. A mando da Teresa,
ela tinha levado para lá alguns
exemplares do jornal do Partido.
O capitão, então, voltou-se para
a estante do corredor e começou a
catar ali os livros que supostamente serviriam para me inculpar. Ele ia olhando a capa dos livros e os devolvendo à estante.
Como ali estavam os livros sobre
arte, a sua busca era infrutífera.
Até que se deparou com uma pasta, abriu-a e sorriu satisfeito. Tinha encontrado o que buscava.
Chamou o soldado e entregou-lhe
a pasta.
- Isto vamos levar, disse ele ao
soldado.
Eu, que tinha reconhecido a
pasta, aproximei-me:
- Por que vai levar? São os originais de um livro meu sobre arte.
- Sobre arte?, disse ele ironicamente- Sei...
De fato, eu havia reunido ali
uma série de artigos que publicara, anos atrás, no Suplemento Dominical do "Jornal do Brasil", sobre os movimentos da arte contemporânea e pusera o seguinte
título: "Do Cubismo à Arte Neoconcreta". Deveria entregar
aqueles originais, na semana seguinte, à Editora Ler.
Inutilmente tentei explicar ao
capitão que aqueles artigos nada
tinham a ver com política. O soldado os levou junto com livros e
revistas considerados subversivos.
Só depois de algum tempo entendi o motivo daquela decisão. Ele
achou que a palavra "cubismo"
dizia a respeito a Cuba.
E essa foi a anedota que nos fez
rir muito naquela noite de Natal
que passamos no xadrez da Vila
Militar.
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