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MEMÓRIA
Sganzerla era um brasileiro que amava o cinema
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
De Rogério Sganzerla não fui
amigo de convívio próximo,
mas tive com ele alguns encontros
insólitos, que para mim ficaram
indeléveis, em seu apê na Urca,
em São Paulo, na ponte aérea, nos
botecos e restaurantes, no estúdio
Jean Manson onde estava montando um filme sobre Noel Rosa.
Conta-se no Rio de Janeiro que
num encontro com o então governador Brizola, o cineasta teria
lhe revelado a identidade onomástica: "Tem Noel no Leonel!".
Na década de 70 fomos partícipes entrevistados num filme de
Walter Rogério. Um dia ele me
deu de presente um livro de seu
amigo de Lajes, o historiador Paulo Ramos Darendorski, sobre o
movimento Contestado de Santa
Catarina, aconselhando-me a
procurá-lo pelas afinidades eletivas e regionais.
Quando estava tranqüilo, de
bom humor e afável, Rogério saudava-me com a frase "o barbante
não tem fim", a frase de Oswald
de Andrade que eu botei num artigo sobre o cinema dele escrito
para a Folha na década de 70.
Rogério Sganzerla era apaixonado por Oswald de Andrade, cuja obra conhecia de cor e salteado,
tanto que o discurso do seu cinema é oswaldiano no ritmo, no léxico, no aforismo, no trocadilho.
O crítico Mário Drumond percebeu isso ao lembrar uma tirada
oswaldiana genial de Rogério:
"Neste país perdoa-se tudo, menos a inteligência".
O filme "O Bandido da Luz Vermelha" é o romance "Serafim
Ponte Grande". A linda homenagem a Oswald com a sua pioneira
prosa cinematográfica, no limiar
do século do cinema. Trinta anos
antes de Godard aparecer no pedaço, Oswald era godardiano. A
forma de Rogério dialogar trazia
uma percepção metonímica das
coisas com uma linguagem dialética da parte com o todo.
A sua insurgência estética profana e plebéia mesclava-se a um
indomável instinto refratário à
mercadoria no cinema, o que não
o afastava da busca do merecido
sucesso. O jeito dele olhar o detalhe na realidade física, dando um
close repetido sobre o boné do
Lula, o sujeito usando boné. Boné.
Não dá. Com boné é difícil.
O cinema como via de acesso ao
conhecimento específico da realidade é a marca de seus filmes sobre o subdesenvolvimento industrializado e a degradação do homem brasileiro convertido num
boçal derrelito de massa: o lixo.
"Abismu", que se vale da avacalhação e do escracho, tanto de si
quanto dos outros, foi precedido
pelos seus artigos juvenis que, vazados num raciocínio rigorosamente coordenado, revelavam o
excelente crítico que estava por
dentro da gramática do cinema: a
luz, o som, a lente, a técnica. Rogério adorava conversar sobre o
cinema, mesmo quando o assunto não era sobre cinema, ao contrário dos perfunctórios cineastas
que não se perguntam nunca: que
que é o cinema?
A vida de Rogério não foi fácil.
Comeu o pão que o diabo amassou por levar a sério o envolvimento com o cinema e sua função
pública, brigando e se arrastando
em polêmicas pesadas nos jornais. Teve a sorte na vida de encontrar Helena Inês, que lhe deu
duas filhas adoráveis e delicadas.
Não fosse a precariedade do nosso subdesenvolvimento, material
e mental, ele poderia ter feito mais
20 filmes de alto nível.
Só agora que suas cinzas mortais estão depositadas no cemitério de Joaçaba é que me dou conta
de que ele foi no cinema um jagunço de Santa Catarina, embora
essa inserção sulina não apareça
materializada em sua obra. Uma
espécie de Lampião "do sur" no
cinema, como dizia Oswald?
Um aspecto problemático em
sua vida foi a desavença com
Glauber Rocha, assunto esse doloroso que não era tocado entre
nós. Confesso que nunca tentei
apurar isso a limpo. Nunca efetivamente me interessei pelo chamado racha entre o cinema novo
e o cinema udigrudi ou de invenção. Também nunca me perguntei quem é que estava certo ou errado. O que realmente importa é
que a despeito de Rogério não fazer profissão de fé em torno do
nacionalismo, do terceiromundismo e do anti-imperialismo, ele
nunca se deixou corromper pelo
poder, como aconteceu com muitos dos ex-amigos do cinema novo de Glauber. E disso Rogério tinha plena consciência.
Muitas das brigas entre as patotas e as gerações cinematográficas
foram reflexo da situação colonial
de um cinema dominado ou condenado a desaparecer. Sou testemunha da admiração que Rogério tinha por Glauber. Quando este morreu, em 1981, Rogério me
disse que o líder do cinema novo
tinha sido vítima de um parricídio
feito pelos filhos que foram mimados e paparicados.
Curioso, do ponto de vista simbólico, é que o último filme de
Glauber, "A Idade da Terra", está
mais próximo esteticamente do
cinema de Rogério, "Sem essa
Aranha", do que do pessoal do cinema novo. Vai ser difícil aparecer outro intelectual tão vocacionado para o cinema. Foi excelente
a idéia de enterrar Rogério Sganzerla lá em Joaçaba, a cidade do
oeste de Santa Catarina onde ele
veio ao mundo.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é
professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa
Amarela).
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