São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

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MEMÓRIA

Sganzerla era um brasileiro que amava o cinema

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

De Rogério Sganzerla não fui amigo de convívio próximo, mas tive com ele alguns encontros insólitos, que para mim ficaram indeléveis, em seu apê na Urca, em São Paulo, na ponte aérea, nos botecos e restaurantes, no estúdio Jean Manson onde estava montando um filme sobre Noel Rosa. Conta-se no Rio de Janeiro que num encontro com o então governador Brizola, o cineasta teria lhe revelado a identidade onomástica: "Tem Noel no Leonel!".
Na década de 70 fomos partícipes entrevistados num filme de Walter Rogério. Um dia ele me deu de presente um livro de seu amigo de Lajes, o historiador Paulo Ramos Darendorski, sobre o movimento Contestado de Santa Catarina, aconselhando-me a procurá-lo pelas afinidades eletivas e regionais.
Quando estava tranqüilo, de bom humor e afável, Rogério saudava-me com a frase "o barbante não tem fim", a frase de Oswald de Andrade que eu botei num artigo sobre o cinema dele escrito para a Folha na década de 70.
Rogério Sganzerla era apaixonado por Oswald de Andrade, cuja obra conhecia de cor e salteado, tanto que o discurso do seu cinema é oswaldiano no ritmo, no léxico, no aforismo, no trocadilho. O crítico Mário Drumond percebeu isso ao lembrar uma tirada oswaldiana genial de Rogério: "Neste país perdoa-se tudo, menos a inteligência".
O filme "O Bandido da Luz Vermelha" é o romance "Serafim Ponte Grande". A linda homenagem a Oswald com a sua pioneira prosa cinematográfica, no limiar do século do cinema. Trinta anos antes de Godard aparecer no pedaço, Oswald era godardiano. A forma de Rogério dialogar trazia uma percepção metonímica das coisas com uma linguagem dialética da parte com o todo.
A sua insurgência estética profana e plebéia mesclava-se a um indomável instinto refratário à mercadoria no cinema, o que não o afastava da busca do merecido sucesso. O jeito dele olhar o detalhe na realidade física, dando um close repetido sobre o boné do Lula, o sujeito usando boné. Boné. Não dá. Com boné é difícil.
O cinema como via de acesso ao conhecimento específico da realidade é a marca de seus filmes sobre o subdesenvolvimento industrializado e a degradação do homem brasileiro convertido num boçal derrelito de massa: o lixo.
"Abismu", que se vale da avacalhação e do escracho, tanto de si quanto dos outros, foi precedido pelos seus artigos juvenis que, vazados num raciocínio rigorosamente coordenado, revelavam o excelente crítico que estava por dentro da gramática do cinema: a luz, o som, a lente, a técnica. Rogério adorava conversar sobre o cinema, mesmo quando o assunto não era sobre cinema, ao contrário dos perfunctórios cineastas que não se perguntam nunca: que que é o cinema?
A vida de Rogério não foi fácil. Comeu o pão que o diabo amassou por levar a sério o envolvimento com o cinema e sua função pública, brigando e se arrastando em polêmicas pesadas nos jornais. Teve a sorte na vida de encontrar Helena Inês, que lhe deu duas filhas adoráveis e delicadas. Não fosse a precariedade do nosso subdesenvolvimento, material e mental, ele poderia ter feito mais 20 filmes de alto nível.
Só agora que suas cinzas mortais estão depositadas no cemitério de Joaçaba é que me dou conta de que ele foi no cinema um jagunço de Santa Catarina, embora essa inserção sulina não apareça materializada em sua obra. Uma espécie de Lampião "do sur" no cinema, como dizia Oswald?
Um aspecto problemático em sua vida foi a desavença com Glauber Rocha, assunto esse doloroso que não era tocado entre nós. Confesso que nunca tentei apurar isso a limpo. Nunca efetivamente me interessei pelo chamado racha entre o cinema novo e o cinema udigrudi ou de invenção. Também nunca me perguntei quem é que estava certo ou errado. O que realmente importa é que a despeito de Rogério não fazer profissão de fé em torno do nacionalismo, do terceiromundismo e do anti-imperialismo, ele nunca se deixou corromper pelo poder, como aconteceu com muitos dos ex-amigos do cinema novo de Glauber. E disso Rogério tinha plena consciência.
Muitas das brigas entre as patotas e as gerações cinematográficas foram reflexo da situação colonial de um cinema dominado ou condenado a desaparecer. Sou testemunha da admiração que Rogério tinha por Glauber. Quando este morreu, em 1981, Rogério me disse que o líder do cinema novo tinha sido vítima de um parricídio feito pelos filhos que foram mimados e paparicados.
Curioso, do ponto de vista simbólico, é que o último filme de Glauber, "A Idade da Terra", está mais próximo esteticamente do cinema de Rogério, "Sem essa Aranha", do que do pessoal do cinema novo. Vai ser difícil aparecer outro intelectual tão vocacionado para o cinema. Foi excelente a idéia de enterrar Rogério Sganzerla lá em Joaçaba, a cidade do oeste de Santa Catarina onde ele veio ao mundo.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa Amarela).

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