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CONTARDO CALLIGARIS
Para uma São Paulo de sonho
Gilberto Dimenstein acaba de publicar "O Mistério
das Bolas de Gude" (Papirus). Ler
o livro é uma boa maneira de festejar os 452 anos de São Paulo.
Dimenstein, que é colunista da
Folha, é apaixonado pelas cidades. Desta vez, ele nos conta as
descobertas feitas em seu incansável passeio pelas ruas, pelos becos e pelas sarjetas de São Paulo e
de Nova York, à procura dos sinais de uma vida possível.
Esses sinais são as pequenas histórias de homens e mulheres que
transformaram ou estão transformando a "selva urbana" num espaço de convivência. Termina-se
a leitura com a sensação de escutar um burburinho de coragem e
carinho que pode vencer o ruído
convulso do trânsito, dos ódios e
das exclusões.
Na segunda-feira, no Masp, para celebrar o livro e o aniversário
de São Paulo, participei de uma
mesa-redonda: "São Paulo É Melhor do que Parece?". Eis como
tentei contribuir ao debate.
Nos anos 50 e 60, eu vivia em
Milão. O cinema italiano propunha vários filmes ambientados na
cidade. Dois são famosos: "Milagre em Milão", de Vittorio de Sica
(1950), e "Rocco e Seus Irmãos",
de Luchino Visconti (1960). Ora,
quase todos esses filmes apresentavam uma Milão que pouco tinha a ver com o cotidiano da gente, ou seja, dos jovens de classe
média.
"Rocco", por exemplo, é um filme maravilhoso, graças ao qual
descobríamos a realidade da imigração interna que estava mudando a cara do país. Mas as ruas
pelas quais Rocco circulava eram
tão exóticas para nós quanto o Japão dos "Sete Samurais".
Nos anos 60, o filme "milanês"
que mais me marcou não era
muito bom. Não me lembro do título nem da trama. Era uma história de jovens relativamente
bem comportados, que se apaixonavam e se desapaixonavam,
madrugavam para caçar na bruma do inverno, bebiam café no
Corso Vitorio Emanuele e por aí
vai. Esse filme anônimo sobrevive
na lembrança dos adolescentes
milaneses da época porque ele
mostrava que o cenário de nossa
vida podia ser o pano de fundo de
uma ficção. Por um instante, parecia não ser necessário que nossos devaneios acontecessem em
Paris ou em Londres. Talvez fosse
possível sonhar ali mesmo, onde a
gente vivia. Mas foi um filme só.
No seu livro, Dimenstein explica a extraordinária virada de Nova York, que, antes dos anos 90,
era uma cidade tão violenta
quanto os bairros inseguros de
São Paulo. Houve o crescimento
econômico, as políticas públicas
de segurança e as iniciativas generosas que Dimenstein descreve.
Há um outro fator: mesmo em
seus anos tétricos, Nova York
nunca parou de ser um cenário de
sonho. Nos anos 70, quem freqüentasse um teatro da Broadway devia se aventurar por uma
inquietante zona de droga, prostituição e miséria. Mas essa desolação era o palco, por exemplo, de
"Perdidos na Noite" (1969): em
seus momentos mais sinistros,
Nova York era uma matriz de ficção e devaneio. Já naqueles anos,
era difícil passear por Manhattan
sem esbarrar numa filmagem. E
continua assim.
Duas conseqüências: 1) O cenário, de tanto estar presente, torna-se um dos protagonistas e é amado e idealizado como tal (há uma
longa lista de filmes e seriados em
que Nova York é parte do título);
2) Os espectadores dos filmes e os
passeantes que se aglomeram ao
redor do set das filmagens, por
mais que a vida lhes sirva frustrações, aprendem que na sua cidade
é permitido sonhar.
Ora, as cidades que prosperam
são aquelas que escolhemos para
serem cenário de nossos sonhos.
Bonitas ou feias, ricas ou pobres,
elas são as cidades de sonho.
O cinema brasileiro, com poucas exceções, segue o modelo de
"Rocco". Por exemplo, "O Invasor", de Beto Brant, nos apresenta
uma São Paulo que não é o espaço da vida da maioria dos espectadores. Com isso, a periferia pára de ser um universo esquecido e
recalcado pela má consciência
dos privilegiados. Mas, ao meu
ver, o mais relevante é que talvez,
graças ao filme, moradores da periferia descubram que seu espaço
pode ser cenário de uma ficção:
"Aqui também é possível sonhar".
Infelizmente, na periferia quase
não há cinemas...
A televisão foge do cenário urbano concreto. "Belíssima", de
Sílvio de Abreu, a ótima novela
do momento, acontece em São
Paulo, mas essa é apenas uma declaração abstrata ("Viu a Paulista? Estamos em São Paulo."). Os
personagens circulam por casas e
apartamentos recontruídos em
estúdio. Ninguém conversa num
boteco da Vila Madalena, ninguém almoça no restaurante onde estivemos na semana passada,
ninguém erra pelo shopping onde
fomos no sábado, ninguém passeia pela rua onde fazemos nossas
compras.
Há explicações financeiras e logísticas: a Globo produz suas ficções no Rio. No entanto, o Rio das
novelas cariocas é um cartão-postal de fundo, bonito, mas tão abstrato quanto a Paulista vista de
helicóptero.
Talvez não se trate só de logística e finanças. Talvez se trate de
uma falta de amor.
Está na hora de acreditar que é
possível inventar e contar histórias na paisagem concreta de nossa vida. Por quê? Porque podemos
desrespeitar o espaço em que vivemos, mas sempre respeitamos o
cenário de nossos sonhos.
@ - ccalligari@uol.com.br
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