São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2008

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Crítica/"Quem Pagou a Conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura"

Com apetite por escândalo e detalhe, livro tem efeito de "lista negra" ao contrário

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

O "perfeito idiota latino-americano", e muitos latino-americanos não tão idiotas assim, acostumaram-se a ver agentes da CIA ajudando a derrubar governos de esquerda em todas as partes do mundo e ensinando técnicas de tortura para os regimes ditatoriais que os sucederam.
Comparativamente, a realização de congressos de escritores e o apoio a revistas de intelectuais foram algumas das atividades menos condenáveis da agência de espionagem americana. É esse vasto empreendimento de propaganda cultural que Frances Stonor Saunders analisa, com enorme apetite pelo escândalo e pelo detalhe, em "Quem Pagou a Conta?"
Publicado nos Estados Unidos com o título "The Cultural Cold War", a pesquisa de Saunders ilumina duas décadas das ações secretas da CIA no "front" cultural. Estavam longe de ser toscas. Com dinheiro de sobra, proveniente de várias fundações de fachada, foi possível promover exposições de arte abstrata americana na Europa, apresentar turnês da Orquestra Filarmônica de Boston em Paris e Berlim, e criar revistas de alto padrão, como "Encounter", que tinha como um de seus editores Stephen Spender, um dos mais importantes poetas ingleses da época.
George Kennan, talvez o mais importante formulador da política externa americana no pós-guerra, explicou com alguma candura as atividades culturais da CIA: os Estados Unidos não tinham ministério da Cultura... De modo que tudo se resumia, afinal, ao que um ministério francês ou brasileiro tinha obrigação de fazer: promover a cultura de seu próprio país no estrangeiro.
Por que então toda a operação tinha de ser secreta? Um dos motivos mais curiosos para o sigilo daquelas operações é que a extrema-direita americana, cada vez mais histérica durante o macartismo, não admitiria que o governo ajudasse artistas tão modernos quanto Jackson Pollock e revistas tão "avançadas" como a "Partisan Review". Eram todos "vermelhos"; a própria CIA estava infestada deles, vociferava o senador Joseph McCarthy no auge da caça às bruxas.

Lista negra ao contrário
O livro de Saunders tem, hoje em dia, o efeito de uma "lista negra" ao contrário. Quem foi financiado pela CIA? Quem sabia que estava sendo financiado? Os nomes, a começar pelo de Spender, são muitos, e na sua maioria pouco conhecidos no Brasil. Pouca gente resistia, entretanto, a mordomias, bons pagamentos e viagens grátis: Mary McCarthy, Robert Lowell, Hannah Arendt, William Styron são citados entre os que, "sabendo ou não", participaram no mínimo de um ou outro convescote.
O excesso de nomes, a falta de um organograma de toda a operação e certo espírito persecutório prejudicam a excelente pesquisa de Saunders. Não é justo criticar um livro pelo que não se propunha a ser, mas dois pontos devem ser levantados.
Um levantamento de toda a máquina soviética de auxílio material e de prestígio aos intelectuais europeus da época tornaria sem dúvida mais equilibrada a narrativa de Saunders. Além disso, ao escolher como principais personagens os homens da CIA e seus financiadores, o livro dá menos atenção ao que haveria de mais interessante a ser contado: qual a atitude, os dilemas, os compromissos dos financiados? Em que isso afetou seus escritos, pinturas e composições? A feroz objetividade investigativa de Frances Saunders, admirável no seu gênero, talvez não seja a qualidade mais indicada para responder a essa pergunta.


QUEM PAGOU A CONTA? A CIA NA GUERRA FRIA DA CULTURA
Autora:
Frances Stonor Saunders
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Record
Quanto: R$ 68 (560 págs.)
Avaliação: bom


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