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Crítica/"Quem Pagou a Conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura"
Com apetite por escândalo e detalhe, livro tem efeito de "lista negra" ao contrário
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
O "perfeito idiota latino-americano", e muitos
latino-americanos não
tão idiotas assim, acostumaram-se a ver agentes da CIA
ajudando a derrubar governos
de esquerda em todas as partes
do mundo e ensinando técnicas
de tortura para os regimes ditatoriais que os sucederam.
Comparativamente, a realização de congressos de escritores e o apoio a revistas de intelectuais foram algumas das atividades menos condenáveis da
agência de espionagem americana. É esse vasto empreendimento de propaganda cultural
que Frances Stonor Saunders
analisa, com enorme apetite
pelo escândalo e pelo detalhe,
em "Quem Pagou a Conta?"
Publicado nos Estados Unidos com o título "The Cultural
Cold War", a pesquisa de Saunders ilumina duas décadas das
ações secretas da CIA no
"front" cultural. Estavam longe
de ser toscas. Com dinheiro de
sobra, proveniente de várias
fundações de fachada, foi possível promover exposições de arte abstrata americana na Europa, apresentar turnês da Orquestra Filarmônica de Boston
em Paris e Berlim, e criar revistas de alto padrão, como "Encounter", que tinha como um
de seus editores Stephen Spender, um dos mais importantes
poetas ingleses da época.
George Kennan, talvez o
mais importante formulador
da política externa americana
no pós-guerra, explicou com alguma candura as atividades
culturais da CIA: os Estados
Unidos não tinham ministério
da Cultura... De modo que tudo
se resumia, afinal, ao que um
ministério francês ou brasileiro
tinha obrigação de fazer: promover a cultura de seu próprio
país no estrangeiro.
Por que então toda a operação tinha de ser secreta? Um
dos motivos mais curiosos para
o sigilo daquelas operações é
que a extrema-direita americana, cada vez mais histérica durante o macartismo, não admitiria que o governo ajudasse artistas tão modernos quanto
Jackson Pollock e revistas tão
"avançadas" como a "Partisan
Review". Eram todos "vermelhos"; a própria CIA estava infestada deles, vociferava o senador Joseph McCarthy no auge da caça às bruxas.
Lista negra ao contrário
O livro de Saunders tem, hoje
em dia, o efeito de uma "lista
negra" ao contrário. Quem foi
financiado pela CIA? Quem sabia que estava sendo financiado? Os nomes, a começar pelo
de Spender, são muitos, e na
sua maioria pouco conhecidos
no Brasil. Pouca gente resistia,
entretanto, a mordomias, bons
pagamentos e viagens grátis:
Mary McCarthy, Robert Lowell, Hannah Arendt, William
Styron são citados entre os que,
"sabendo ou não", participaram no mínimo de um ou outro
convescote.
O excesso de nomes, a falta
de um organograma de toda a
operação e certo espírito persecutório prejudicam a excelente
pesquisa de Saunders. Não é
justo criticar um livro pelo que
não se propunha a ser, mas dois
pontos devem ser levantados.
Um levantamento de toda a
máquina soviética de auxílio
material e de prestígio aos intelectuais europeus da época tornaria sem dúvida mais equilibrada a narrativa de Saunders.
Além disso, ao escolher como
principais personagens os homens da CIA e seus financiadores, o livro dá menos atenção ao
que haveria de mais interessante a ser contado: qual a atitude,
os dilemas, os compromissos
dos financiados? Em que isso
afetou seus escritos, pinturas e
composições? A feroz objetividade investigativa de Frances
Saunders, admirável no seu gênero, talvez não seja a qualidade mais indicada para responder a essa pergunta.
QUEM PAGOU A CONTA? A CIA NA GUERRA FRIA DA CULTURA
Autora: Frances Stonor Saunders
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Record
Quanto: R$ 68 (560 págs.)
Avaliação: bom
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