|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANTONIO CICERO
Sobre a eutanásia
Enquanto há vida, há esperança de mais vida; mas o que importa é a qualidade dessa sobrevida
NESTE MÊS, Rubem Alves escreveu, para a Folha, dois
belos artigos em defesa do
direito à eutanásia voluntária. Segundo ele, "como um instrumento
musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de
produzir música, ainda que seja a
de um simples sorriso". Concordo.
Lembro a sentença de Sêneca:
"Bom não é viver, mas viver bem".
Em reação ao primeiro dos artigos do Rubem Alves, alguns leitores escreveram cartas que o "Painel do Leitor" publicou na Folha
Online. Todas elas atacam a eutanásia. Decidi comentar os seus argumentos, por considerá-los típicos, logo instrutivos.
A eutanásia voluntária pode ser
descrita como o ato de proporcionar uma morte tranqüila a uma
pessoa que, padecendo de um sofrimento atroz, e cujo estado de saúde
haja sido diagnosticado como terminal, tenha lucidamente optado
por ela.
Pois bem, um dos leitores em
questão é contra a eutanásia porque lhe parece muito difícil ter certeza de que uma pessoa realmente
se encontra em estado terminal.
Há, segundo ele, casos que surpreendem. Não duvido disso, mas o
fato é que as curas "milagrosas" são
raríssimas e que, na medicina (como em toda a vida prática), não é
pela expectativa da ocorrência do
mais improvável, mas pela expectativa da ocorrência do mais provável que se devem orientar as decisões humanas.
Sei que "enquanto há vida, há esperança". Mas reflitamos. Enquanto há vida, há esperança de quê? De
mais vida. O que importa, porém, é
a qualidade dessa sobrevida. Como
dizia o já citado Sêneca, o sábio vive
tanto quanto deve, não tanto quanto pode, pois o que lhe importa é a
qualidade, não a quantidade da sua
vida. Ora, se nem sempre a melhor
vida é a mais longa, sempre a mais
longa morte é a pior.
Outro leitor acha que só Deus,
como um pai, sabe se precisamos
de uma morte lenta ou rápida, de
modo que só a ele compete decidir
e arquitetar a nossa morte. Confesso que me parece escandalosamente sacrílega a idéia de que Deus seja
um pai que lentamente torture seu
filho. Quanto ao argumento em si,
porém, Rubem Alves já o havia previsto, dizendo mais ou menos que,
se foi Deus que enviou a doença,
não se vê por que a tentativa de
prolongar a vida artificialmente seria menos contrária aos desígnios
Dele do que a tentativa de abreviá-la; de modo que, se concordássemos com esse leitor, deveríamos
abrir mão de toda medicina.
Finalmente, um terceiro leitor
pondera que até mesmo as experiências dolorosas podem promover o crescimento espiritual. Quero
crer que quem pense assim não seja um monstro, mas apenas alguém
que jamais testemunhou o sofrimento, a dor, a aflição, a humilhação, a indignidade de que padece
um doente terminal, sem esperança de melhora e, freqüentemente,
sem controle dos esfíncteres, em
meio a fezes e urina, entubado e a
respirar com a ajuda de máquinas.
Como pode alguém achar que há
"crescimento espiritual" na redução do pensamento humano à mais
obscura animalidade, à inescapável
obsessão com o puro e impotente
pavor da dor física?
Mas a verdade é que as duas posições -a que defende o direito à eutanásia voluntária e a que o ataca-
são assimétricas. A primeira pretende que, dada uma situação de
extremo sofrimento e impotência,
uma pessoa possa escolher entre
uma morte rápida e uma morte
lenta. A partir dessas possibilidades, espera-se que cada qual aja livremente, de acordo com as suas
convicções e conveniências.
Já a segunda, ao atacar o direito à
eutanásia, retira à pessoa que se
encontra na situação de extremo
sofrimento e impotência a própria
possibilidade de escolher. Isso fere
o princípio da sociedade aberta, segundo o qual cada cidadão tem o direito de pensar e agir como queira
-maximamente em relação à própria vida e morte- desde que não
infrinja igual direito de outrem.
Os defensores da eutanásia são às
vezes acusados de fazerem parte de
uma "cultura da morte". Trata-se
de uma lamentável e deliberada
confusão. A morte é, concretamente, o processo de morrer. Esse processo pode ser rápido ou lento. O
direito à eutanásia é o direito que
aquele que está a morrer tem de
abreviar a sua morte, caso esta esteja sendo excessivamente sofrida.
Abreviar a morte é torná-la mais
curta, menor, mais leve. Seria, portanto, mais correto dizer que quem
pertence à cultura da morte são os
que preferem impor a todos a morte mais longa, maior, mais pesada.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Cinema: "O Signo da Cidade" tem sessão gratuita e debate Índice
|