São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2008

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ANTONIO CICERO

Sobre a eutanásia

Enquanto há vida, há esperança de mais vida; mas o que importa é a qualidade dessa sobrevida

NESTE MÊS, Rubem Alves escreveu, para a Folha, dois belos artigos em defesa do direito à eutanásia voluntária. Segundo ele, "como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso". Concordo. Lembro a sentença de Sêneca: "Bom não é viver, mas viver bem".
Em reação ao primeiro dos artigos do Rubem Alves, alguns leitores escreveram cartas que o "Painel do Leitor" publicou na Folha Online. Todas elas atacam a eutanásia. Decidi comentar os seus argumentos, por considerá-los típicos, logo instrutivos.
A eutanásia voluntária pode ser descrita como o ato de proporcionar uma morte tranqüila a uma pessoa que, padecendo de um sofrimento atroz, e cujo estado de saúde haja sido diagnosticado como terminal, tenha lucidamente optado por ela.
Pois bem, um dos leitores em questão é contra a eutanásia porque lhe parece muito difícil ter certeza de que uma pessoa realmente se encontra em estado terminal. Há, segundo ele, casos que surpreendem. Não duvido disso, mas o fato é que as curas "milagrosas" são raríssimas e que, na medicina (como em toda a vida prática), não é pela expectativa da ocorrência do mais improvável, mas pela expectativa da ocorrência do mais provável que se devem orientar as decisões humanas.
Sei que "enquanto há vida, há esperança". Mas reflitamos. Enquanto há vida, há esperança de quê? De mais vida. O que importa, porém, é a qualidade dessa sobrevida. Como dizia o já citado Sêneca, o sábio vive tanto quanto deve, não tanto quanto pode, pois o que lhe importa é a qualidade, não a quantidade da sua vida. Ora, se nem sempre a melhor vida é a mais longa, sempre a mais longa morte é a pior.
Outro leitor acha que só Deus, como um pai, sabe se precisamos de uma morte lenta ou rápida, de modo que só a ele compete decidir e arquitetar a nossa morte. Confesso que me parece escandalosamente sacrílega a idéia de que Deus seja um pai que lentamente torture seu filho. Quanto ao argumento em si, porém, Rubem Alves já o havia previsto, dizendo mais ou menos que, se foi Deus que enviou a doença, não se vê por que a tentativa de prolongar a vida artificialmente seria menos contrária aos desígnios Dele do que a tentativa de abreviá-la; de modo que, se concordássemos com esse leitor, deveríamos abrir mão de toda medicina.
Finalmente, um terceiro leitor pondera que até mesmo as experiências dolorosas podem promover o crescimento espiritual. Quero crer que quem pense assim não seja um monstro, mas apenas alguém que jamais testemunhou o sofrimento, a dor, a aflição, a humilhação, a indignidade de que padece um doente terminal, sem esperança de melhora e, freqüentemente, sem controle dos esfíncteres, em meio a fezes e urina, entubado e a respirar com a ajuda de máquinas.
Como pode alguém achar que há "crescimento espiritual" na redução do pensamento humano à mais obscura animalidade, à inescapável obsessão com o puro e impotente pavor da dor física?
Mas a verdade é que as duas posições -a que defende o direito à eutanásia voluntária e a que o ataca- são assimétricas. A primeira pretende que, dada uma situação de extremo sofrimento e impotência, uma pessoa possa escolher entre uma morte rápida e uma morte lenta. A partir dessas possibilidades, espera-se que cada qual aja livremente, de acordo com as suas convicções e conveniências.
Já a segunda, ao atacar o direito à eutanásia, retira à pessoa que se encontra na situação de extremo sofrimento e impotência a própria possibilidade de escolher. Isso fere o princípio da sociedade aberta, segundo o qual cada cidadão tem o direito de pensar e agir como queira -maximamente em relação à própria vida e morte- desde que não infrinja igual direito de outrem.
Os defensores da eutanásia são às vezes acusados de fazerem parte de uma "cultura da morte". Trata-se de uma lamentável e deliberada confusão. A morte é, concretamente, o processo de morrer. Esse processo pode ser rápido ou lento. O direito à eutanásia é o direito que aquele que está a morrer tem de abreviar a sua morte, caso esta esteja sendo excessivamente sofrida. Abreviar a morte é torná-la mais curta, menor, mais leve. Seria, portanto, mais correto dizer que quem pertence à cultura da morte são os que preferem impor a todos a morte mais longa, maior, mais pesada.


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