São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

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NELSON ASCHER

O Fim da Poesia?


É possível reverter essa queda e tornar a poesia novamente importante e popular?

A PARTIR de 1922, oficialmente, os poetas brasileiros deixaram de lado tanto os augustos mármores com ecos argênteos ou brônzeos do parnasianismo como os turíbulos, missais e castos aromas de incenso do simbolismo, e passaram a compor, pelo telefone, poemas sobre o trânsito, o semáforo e a eletricidade.
Claro que nem tudo se reduzia a esse esquema simples. Augusto dos Anjos já recorrera a um léxico de estudante de medicina ou de biólogo amador, à cultura de um leitor provinciano de almanaques que, vindos da capital federal, anunciavam novas descobertas e invenções, para orquestrar em seus sonetos uma sonoridade grotesca cujo fascínio hipnótico poucos negariam.
Enquanto isso, Manuel Bandeira, familiarizado com Heinrich Heine, criava suas canções pseudo-ingênuas ou, inspirado por Verlaine, transformava nosso carnaval tropical num espetáculo a um tempo melancolicamente decadente e elegante o bastante para evocar a corte dos Bourbons.
Independentemente, porém, de contra o quê se revoltava, a poesia moderna como ela começou a ser praticada aqui nos anos 20 caracterizou-se pelo abandono das formas fixas e pela adoção da linguagem coloquial. O que, pelo menos de início, ocorreu com as formas não foi diferente no seu caso do que sucedera com a pintura quando saiu dos limites do figurativismo e com a música atonal. O curioso é que sua contrapartida, a incorporação de temas não "poéticos" e de uma fala oriunda do cotidiano, apontava numa direção oposta.
Pois as formas fixas fornecem ao leitor um padrão consagrado, um ambiente seguro dentro do qual este se sente em contato com a poesia. Graças, em geral, a esse acordo de base, o poeta pode negociar com ele a alteração de outros elementos. Sem a certeza prévia que essas formas lhe dão, cabe a cada leitor se tornar um especialista que tenta desvendar se aquilo que lhe foi apresentado é de fato um poema ou não. Uma tarefa exigente e, enfim, para poucos.
Qual, no entanto, o vínculo de necessidade entre essa redução do círculo de leitores e a propensão a falar quase sempre nas cadências de uma pretensa "vox populi"? Menos de complementaridade que de compensação: talvez os poetas de então pensassem que, buscando competir com o noticiário e as manchetes jornalísticas, recuperariam os leitores que perdiam com o que, embora o chamado de experimentalismo, era antes a quebra de um contrato secular.
O coloquialismo em si já era, não uma conquista, mas uma concessão e, depois desta, outras viriam, todas insuficientes. O fato é que os poetas da geração seguinte, os que estrearam nos anos 30/40, recuaram diante da possibilidade de alienar de vez o público restrito que a poesia ainda possuía e se lançaram na criação de obras complexas que não desistiam de antemão de nenhum instrumento potencialmente útil. Não é à toa que Drummond escreveu sonetos, Vinicius compôs baladas e João Cabral raramente se afastou da quadra.
Seja como for, nenhuma medida, nenhum recuo tático bastou para recolocar a poesia na posição de arte central à qual ela naturalmente aspira. E, para provar involuntariamente essa constatação, os poetas dos anos 70 se autodenominavam "marginais" como se ainda houvesse algum que não o fosse.
De quantas artes já tiveram um estatuto melhor e um público maior, nenhuma parece ter caído tanto quanto a poesia e isso, paradoxalmente, durante o século 20, quando surgiram não somente algumas das vozes mais memoráveis que o Ocidente produziu, mas também tradições anteriormente ignoradas se apresentaram, através da tradução, a um público que, pela primeira vez na história, prometia se tornar universal.
É possível reverter essa queda e tornar a poesia novamente importante e popular? Por sorte, o futuro a deus pertence e as tendências que abriga não são facilmente desvendáveis. Muito depende do empenho dos próprios poetas, naturalmente, de sua capacidade de reconhecer que sua arte, se bem que nutra inúmeras outras, talvez esteja beirando a extinção. O papel do público, porém, não pode ser ignorado e tudo, no último século, aponta para consumidores cada vez mais preguiçosos, cada vez mais sequiosos de um prazer fácil, repetitivo e que não envolva maiores esforços. Como convencer um público sedado por uma satisfação pré-digerida de que há, sim, prazeres maiores, mas que desfrutá-los requer trabalho, empenho e suor?


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