São Paulo, sábado, 26 de março de 2005

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CRÍTICA

Grupo Espanca justifica o Fringe com "Por Elise"

SERGIO SALVIA COELHO
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

Uma moça, triste por ter que sacrificar seu cachorro, se apaixona pelo lixeiro, que vive em busca do pai que o abandonou. Enquanto isso, o homem da carrocinha sonha com o Japão. Descrita assim, "Por Elise" parece mais um dos besteiróis que infestam o Fringe. Mas não: a delicadeza da fábula de Grace Passô, como um presente que Belo Horizonte trouxe para compartilhar com o festival, é uma dessas revelações que de tempos em tempos justificam todo o Festival de Curitiba.
Moça danada essa Grace. Do palco controla à perfeição seu personagem, uma contadora de histórias negra de olhos grandes, que, temperando ingenuidade com uma sabedoria ancestral, dispara frases que vão se desdobrando ao longo da fábula em sentidos cada vez mais profundos. Logo depois, como se não bastasse, dirige-se aos colegas atores com uma lucidez hamletiana: a emoção exige técnica, recomenda, diretora que sabe exatamente o que quer e como conseguir.
Como nos haicais, o humor é sempre o ponto de partida. "Cuidado com o que planta", diz ela, por ter plantado um pé de abacate em seu quintal e, por isso, ter que viver sempre sob a ameaça de levar um deles na cabeça. Mas essa eventualidade -e realmente caem abacates em cena, dando a passagem do tempo em forma de piada recorrente-, referida como "uma pancada doce", logo se constitui como a metáfora central da peça, dando nome ao grupo. Pancada é toda a dor repentina que, interrompendo o cotidiano, arde a ausência de Deus. Doce é o encontro com o outro, transpondo seus muros, que possibilita que o tempo volte a correr.
A peça vai assim cruzando "casos" do cotidiano com profundezas vertiginosas, orgulho de Minas desde Guimarães Rosa. "Os cachorros latem o que ouvem nas casas", propõe. A aprofundada técnica vocal e a grande entrega dos atores concretizam o princípio à perfeição.
Samira Ávila, a moça perdida na dor, sabe ser comovente e engraçada. Gustavo Bones, o lixeiro, herói intocável e puro, é apaixonante, e Paulo Azevedo é forte como o caçador de cachorros e de Deus. Marcelo Castro é inesquecível em um papel que poucos fazem como ele. O figurino de Marco Paulo Rolla aponta as metáforas sem cair no hermético.
Não é só um grande texto, portanto, mas um texto que dialoga com a criação de todos, atores e técnicos, à exemplo da Cia. Livre de Cybele Forjaz, que marcou presença neste festival com o importante "Arena Conta Danton", e do sempre lembrado "Hysteria", do Grupo XIX. O Grupo Espanca! se insere nessa nova geração que, amparado por políticas culturais essenciais que privilegiam o processo, e não o produto, reinventam um teatro sem gênios nem fórmulas fáceis.
Pena apenas que a luz de Leonardo Pavanello foi prejudicada pelas mesquinhas condições do Fringe. Mas não importa: seja onde for, haverá sempre de frutificar o quintal de Grace Passô.


Por Elise
    
Quando: hoje, às 22h, no Teatro José Maria Santos (r. Treze de Maio, 655)



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