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FERNANDO GABEIRA
Blues da piedade em versão guarani-caiuá
Se cantassem o blues da piedade, os guaranis deixariam de
fora os que cometem apenas pecadilhos. Como dizer que cocar de
índio rende anos de má sorte para
político que o usa. De fora, ficariam também os editores que consideram índio assunto chato e, às
vezes, revestem o extermínio de
uma suave camada de silêncio.
Nem os bandeirantes que mataram mais de meio milhão de guaranis devem compor esse blues.
Piedade se pede, Senhor, para essa gente do governo que viu o índice de mortos subir de 99 para
143 por mil recém-nascidos e resolveu sentar em cima da notícia,
sem perceber que sentavam em
cima de uma baioneta que iria,
fatalmente, furar suas bundas.
Piedade Senhor para a Funasa,
que ameaçou funcionários de demissão, que fabricou os indefectíveis abaixo-assinados de apoio ao
chefe. E, se sobrar piedade, não
esqueçamos do prefeito de Dourados, que tinha medo da repercussão da notícia entre os investidores de fora; do Ministro da Saúde,
que considerou um aumento de
mais de 30% uma normalidade
estatística.
Mas a bondade divina deve se
concentrar naqueles que disseram que a culpa era dos índios,
que sua cultura obriga alimentar
as crianças por último, como se
fossem sequer uma espécie preocupada com sua continuidade.
Uma prece anônima por aqui
pede piedade também para os
que fazem seminários quando
surgem as mortes; para os que
criam comissões para constatar
"in loco", para os que dizem que
estão providenciado, para esses
fanáticos pelo gerúndio. Reuniões, cafezinhos, palavras mágicas como estruturante, seres animados como propostas que dialogam, conferências, reuniões e os
guaranis continuam morrendo.
Uma grande dose de piedade, é
claro, para quem cercou 11 mil
pessoas em um espaço de 3,5 mil
hectares, ignorando os laços da
cultura com a terra, um lugar onde a pessoa pode viver como ela
mesma.
É preciso piedade não só para os
que cercaram, mas para os que
mandam mensagens sinistras, pelo sangue e pela boca. Piedade para os plantadores de soja que borrifam suas lavouras com veneno e
deixam que o vento traga para a
aldeia um ar pestilento, um peido
tóxico.
Piedade para os que trouxeram
o vírus da Aids e para os que jamais conseguiram colocar de pé
um projeto para preservar e cuidar dos que se contaminaram. E
piedade para os vendedores de
cachaça, que vendem um quase
álcool, esmagando a aguardente
tradicional, a chicha, feita da fermentação de batata, milho e
mandioca.
Piedade para os brancos da Funai, que designaram um capitão,
ignorando as 44 lideranças familiares, para os capitães que ajudaram a acabar com os rezadores,
queimando suas tendas. Sobretudo, piedade para os brancos que
constroem capelas, hospitais e os
obrigam a considerar as doenças
apenas do ponto de vista médico.
E se sobrar piedade, Senhor, que
a dirija mais ao sul, para a Justiça
branca em Antônio João, na fronteira com o Paraguai. Os ancestrais guaranis têm 40 mil hectares, mas só podem usufruir delesse o presidente assinar a homologação de suas terras. Os juizes
querem expulsá-los dos últimos
26 hectares, onde resistem à espera de uma simples assinatura, de
quem muito prometeu e desapontou os índios.
Piedade para os pecados mais
sutis, como o do homem comum
que vê o maior grupo indígena do
Brasil como um bando de vagabundos. Ele não sabe, Senhor, que
eles trabalham nas usinas de cana, são explorados no acerto de
contas com o armazém do dono.
Ignora que os aposentados têm
seus cartões retidos pelas mercearias e que só vêem parte de sua
renda.
Crianças com paralisia cerebral, sem tratamento adequado.
Lábios leporinos esperando correção. Meninos sem pálpebras, tuberculose, ainda que decaída.
Trezentos subnutridos na aldeia, Senhor, e apenas um nutricionista correndo como louco.
Equipes de saúde incompletas,
cestas básicas seletivas.
E é preciso piedade, Senhor,
porque toda essa gente quer água
e seus rios secaram sob o bombardeio de lavouras predatórias. Piedade para os brancos que não
conseguiram R$ 2 milhões para
resolver o problema. Dois milhões
tomamos nós, os deputados, em
café e água mineral, enquanto
discutimos os destinos do país.
Quem pede piedade são os suicidas guaranis, cansados do longo
combate, enforcados nos galhos
das árvores que sobrevivem. São
os desesperados que se alçam ao
céu pedindo pelos que ficaram,
pois a terra que era o lugar de ser
como se é, tornou-se a terra do
mal, a moagem de sua cultura, o
extermínio de sua gente.
É preciso muita piedade, Senhor, pois em seu nome falam 25
religiões por aqui, numa gincana
pelas almas nativas. E como nada
acontece, talvez seja melhor, Senhor, com o que pouco restou de
tanta prece, ter um pouco de autopiedade.
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