São Paulo, quarta-feira, 26 de março de 2008

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"Stranded" revê acidente nos Andes

Relatos descrevem a decisão de comer carne humana para sobreviver; na opinião do diretor, ato é "impossível de domesticar"

Título de Gonzalo Arijon que abre hoje em SP o É Tudo Verdade venceu o Festival de Documentários de Amsterdã em 2007

Divulgação
Filmagens de "Stranded: I Have Come from a Plane that Crashed on the Mountains', que reconta episódio trágico nos Andes

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Dos 45 passageiros que iriam de Montevidéu, no Uruguai, a Santiago, no Chile, no avião que caiu nos Andes em 1972, 29 sobreviveram à queda, 24 deles sem ferimentos.
"Por que você [morre], e não eu? Que equação é essa? Qual é a lógica? Por que [a vida] é tão arbitrária", são indagações que o sobrevivente Roberto Canessa compartilha com o cineasta Gonzalo Arijon em "Stranded: I Have Come from a Plane that Crashed on the Mountains" (isolados: eu vim de um avião que se chocou nas montanhas), que inaugura, hoje, em São Paulo, a 13ª edição do Festival Internacional de Documentários - É Tudo Verdade.
"Roberto Canessa é o homem que me inspirou a fazer esse filme, pelo modo como lida com essa experiência. Somos amigos muito, muito próximos. Eu poderia rodar um longa só com ele, mas decidi procurar todos os 16 sobreviventes", conta o uruguaio Arijon, em entrevista à Folha, por telefone, de Paris, onde vive. O diretor é esperado hoje, na sessão de abertura, para convidados.
O número de sobreviventes caiu dos 29 iniciais para os 16 resgatados da montanha, 72 dias após o desastre, por razões que o filme recupera em depoimentos de ricos detalhes.

Avalanche
Oito sucumbiram a uma avalanche na qual os que restaram aprenderam que "a montanha estava viva; não era inerte" e que, sob tempestade, os destroços do avião, em vez de abrigo, eram armadilha fatal.
Cinco outros não resistiram aos ferimentos, ao frio, à desnutrição e ao desânimo com a notícia da interrupção das buscas, anunciada num rádio com o qual o grupo conseguia captar ondas sonoras, mas que era incapaz de transmiti-las.
Na opinião de Arijon, Canessa fala dos 72 dias na montanha "com um discurso que sai do politicamente correto, algo que outros não conseguiram".
A diferença, segundo o diretor, é que Canessa "admite que eles praticaram um ato totalmente impossível de domesticar", ao decidir consumir carne humana para sobreviver.
Nas entrevistas, os sobreviventes contam que, antes de partir para o ato, eles discutiram amplamente "os tabus -mentais, culturais e religiosos" que a questão envolve.
A decisão, de início, não foi unânime, como lembra o sobrevivente Javier Methol: "Eu não era valente. Não me opunha [ao canibalismo], mas não me animava a fazê-lo". A frase que convenceu Methol, de cunho religioso, é um dos pontos desconcertantes do filme.
Além dos debates teóricos, os sobreviventes descrevem no documentário as providências práticas que tomaram para cortar os corpos; citam as partes que consumiram -fibras e ossos raspados, por conter cálcio- e o ritual para ingeri-los.
"Esse filme indica que aquela experiência os transformou e continua os transformando", afirma Arijon.
"Stranded" é a resposta do diretor a outro documentário, "Alive: The Miracle of the Andes" (vivos: o milagre dos andes), de Frank Marshall, feito 30 anos após o acidente e que Arijona julga "decepcionante".

"Bilhete 17"
"Desde então, eu sabia que iria tratar desse tema de forma ambiciosa. Me considero tão próximo dessa história que me sinto tentando comprar o bilhete [de sobrevivente] número 17 com esse filme", diz.
Para fotografar o longa, Arijon chamou o uruguaio radicado no Brasil Cesar Charlone, co-diretor de "O Banheiro do Papa". Diz Arijon que "Cesar tomaria aquele avião, mas não foi, porque estava no Brasil e decidiu ficar alguns dias mais", o que o transforma num sobrevivente indireto e num "fator fundamental" em "Stranded".
Arijon achou que apenas Charlone poderia filmar as cenas de reconstituição da história que recheiam o filme e inserem nele um verbete do vocabulário do cinema ficcional.
"A reconstituição é um instrumento a mais que o documentário busca na ficção para se tornar mais sedutor, o que não é uma novidade", observa o idealizador e diretor do É Tudo Verdade, Amir Labaki.
Labaki define "Stranded" como "um thriller documentário" e cita sua vitória no Festival de Amsterdã, "o que, significa, para um documentário, o mesmo que vencer o Festival de Cannes para uma ficção".

"Universo onírico"
Arijon não corrobora a classificação das imagens não-documentais de "Stranded" como reconstituição. "Elas não explicam nem descrevem as ações. São fragmentos da memória, do universo mental ou onírico deles [os sobreviventes]", diz.
O diretor busca, porém, relativizar a própria classificação de "Stranded" como documentário. "Acho que é um objeto fílmico não facilmente identificável." Um objeto fílmico no qual o contrário da morte não é a vida, mas uma nova origem, fincada nas montanhas, como assinala seu título.


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