São Paulo, sexta-feira, 26 de março de 2010

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Crítica/"Nosso Estranho Amor"

Dramaturgia fraca e autismo cênico marcam peça inspirada em Beckett

LUIZ FERNANDO RAMOS
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

O amor costuma render boas histórias, inclusive nas estranhas formas de dramaturgia de hoje. Não é o caso de "Nosso Estranho Amor", na mostra oficial do Festival de Curitiba. O espetáculo é frágil enquanto relato amoroso e como diálogo com as questões do teatro contemporâneo com que parece flertar.
A inspiração vem de algumas novelas curtas de Samuel Beckett, como "Primeiro Amor", em que moradores de rua travam um namoro lacônico. Para começar, não há sombra da potência da literatura de Beckett nem qualquer vestígio de seu teatro. Dois signos clássicos do teatro naturalista, um banco de jardim e um armário de quarto, ocupam a cena e sugerem um registro da vida urbana.
Quando o ator e dramaturgo João Valadares começa a falar, no solilóquio em que se revela um jovem deserdado que se viu expulso de casa para a rua, a atriz Fabiana Loyola já está em cena e se movimenta em torno do armário numa sequência de ações de uma coquete.
Logo se percebe que a proximidade física não implicará relação. Ao contrário do que o realismo do ambiente sugeriria, eles se ignoram e passam boa parte do espetáculo adiando estudadamente seu encontro e, mesmo quando ele acontece, permanecendo nessa afetação de autonomia.
A impossibilidade dos diálogos dramáticos e o inexorável caráter narrativo das falas dos personagens, que já não trocam entre si e se autoapresentam, é uma das marcas do drama modernista que se tornará mais aguda nas experimentações contemporâneas. Todo teatro que recusa a mimesis realista de reconstituição plena da vida incorre nessa circunstância.
O que diferencia as experiências bem-sucedidas das falhadas é a potência da cena que se instaura e a capacidade dos atores de transcenderem o plano ficcional e estarem de fato presentes. O jogo de verossimilhança se transfere para o aqui agora deste estado de presença, que é ou não autêntico, valendo por si e não por qualquer texto ou ficção subjacente.
No caso da encenação de Cláudio Dias, o estímulo aos atores é no sentido de uma autossuficiência lírica, que os isola em um autismo cênico e esquece a interlocução com o público. O ator diz as falas embevecido com o próprio texto, enquanto a atriz repete fragmentos de canções de Caetano Veloso. Dois músicos tentam preencher, com arranjos de cordas das músicas do compositor, o hiato que se vai criando, mas só conseguem carregar a cena de tom melodramático.
Se há alguma coisa que se salva são os pouco momentos de contato físico entre os personagens, que transcendem os impróprios maneirismos naturalistas e alcançam uma expressividade corporal mais interessante. É, contudo, muito pouco para tantos equívocos. Estranho é que um trabalho tão fraco esteja numa mostra que se quer representativa do melhor teatro brasileiro.

O crítico LUIZ FERNANDO RAMOS viaja a convite da organização do Festival de Curitiba.


NOSSO ESTRANHO AMOR

Avaliação: ruim


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