São Paulo, sexta-feira, 26 de março de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Cara ou coroa


Haverá financiamento formal, mas o que vai contar na eleição será o financiamento oculto


DAQUI ATÉ outubro, assunto quente é um só: eleição. Ia escrever a palavra "política", pensei melhor e escrevi "eleição". Aparentemente, uma coisa tem a ver com outra, mas acredito que devemos separá-las. No fundo, são uma coisa só, sobretudo para efeito de mídia e conversas avulsas.
Eleição é uma coisa, política é (ou pelo menos deve ser) outra. De política, ninguém pode ficar alienado: ela nos atinge, queiramos ou não, há até aquela frase: não adianta ser apolítico, não fazer política já é uma forma concreta de fazer política. Nesse sentido, é um monstro que nos devora, gostemos ou não do monstro.
Se assim é para o assunto maior, que inclusive deu título a obra de Aristóteles, já com a eleição o assunto é menor, paroquial -e bota paróquia nisso. E qualquer um pode, sem pejo, declarar-se desinteressado do fenômeno em si, ou seja, da eleição.
Não deixa de ser um contrassenso de minha parte: afinal, briguei no passado recente pelo direito de votar, fui parar seis vezes na cadeia justamente por causa da política, uma briga que incluía, entre outras reivindicações, o gesto de meter uma cédula na urna. Agora, em tempos tecnológicos, apertar uma tecla na urna eletrônica.
Mas, adquirido o direito, marcadas as eleições, na dança dos partidos e lançados os candidatos, o que sinto diante do fato eleitoral é um tédio cívico: não me considero comprometido com nenhum deles, nem partidos nem candidatos, embora seja amigo de alguns, cidadãos que pleiteiam cargos eletivos. Dou-lhes minha bênção, mas não meu voto, embora, na contramão, desejasse votar em todos, sabendo que a lei proíbe votar em mais de um.
Para escolher esse um, teria de me sujeitar a uma espécie de loteria esportiva, de Mega-Sena, marcando o cartão de forma aleatória. Acredito que continuo sendo aquilo que um general de 1964 me chamou: um péssimo cidadão. Não me dou ao elementar respeito de levar a sério o fato político, embora me atinja no bem e no mal -geralmente no mal.
Para falar a verdade, e a menos que não surja nenhuma novidade, o jogo está lançado em bases mais fáceis para o eleitorado. É um ou outro. Não creio nas possibilidades dos demais, mas, em nível de Presidência da República, a moeda só tem cara e coroa.
A luta ainda não atingiu o seu clímax, o trabalho é feito nos bastidores, conhece-se os dois candidatos, suas propostas gerais, ainda não formalmente lançadas, são conhecidas e não se diferem substancialmente.
O importante está no subsolo de uma eleição importante como a de presidente. Por mais que se discuta a legalidade e a necessidade dos financiamentos, nem os candidatos nem os partidos têm cacife suficiente para bancar o jogo. Há que se apelar para empreiteiros, bancos, entidades daqui e de fora. Haverá o financiamento formal, de acordo com as regras do jogo, mas o que contará será o financiamento oculto por elipse, o qual será o decisivo.
No resto será a lenga-lenga eleitoral, atributo básico do jogo democrático. Mesmo assim, com financiamento e tudo, o pior candidato eleito pelo povo é melhor que o varão de Plutarco imposto pelas armas. (Perdoem esse "varão de Plutarco", mas lembrei-me do marechal Dutra, que era considerado um varão de Plutarco e foi o condestável da ditadura de Vargas.)
Não vou me alongar em mais considerandos para evitar a acusação de mau exemplo. Já me basto em sendo mau cidadão, não desejo fazer proselitismo. Não votarei em nenhum dos candidatos. Desde já, me penitencio da alienação. Transfiro de bom grado a responsabilidade para o eleitorado. Sei que os leitores, querendo ou não, serão eleitores e estarão preocupados com o bem votar, acreditando que o farão de acordo com suas consciências e esperanças.
De alguma forma, eu lucrarei. Se votarem bem, serei beneficiário da euforia geral. Se votarem mal, terei o consolo de não me sentir responsável pelo desastre. O problema, nesse caso, como em muitos outros da faina humana, é saber o que é o bem e o mal, o que é cara ou coroa.


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