São Paulo, segunda-feira, 26 de abril de 2004

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NELSON ASCHER

Metrópoles, colônias e traduções

As línguas indo-européias, a família à qual pertence a nossa, sobrepuseram-se às outras, que eram faladas na Europa, cerca de 3.000 anos atrás. Ninguém sabe direito que outros idiomas eram falados antes no continente, embora, provavelmente, o basco, uma língua sem parentes conhecidos, seja um deles e o Etrusco, uma língua da península italiana que nos legou documentos e inscrições ainda não decifrados, seja outro.
Tampouco se tem muita certeza a respeito do lugar de origem daquilo que os lingüistas chamam de proto-indo-europeu, isto é, a língua que os ancestrais de todos os povos indo-europeus usavam antes que esta se subdividisse ou se ramificasse em suas dezenas de descendentes. As hipóteses mais antigas sugeriam as estepes a nordeste do mar Negro e ao norte do mar Cáspio, enquanto os estudos mais recentes, como os de Colin Renfrew, preferem a Anatólia, região que hoje em dia pertence à Turquia. Esteja onde estiver a origem dessa família, uma coisa é certa: ela é uma das mais bem-sucedidas do planeta, tendo se espalhado por quase toda a Eurásia e, no último meio milênio, pela extensão das Américas.
O enraizamento de três línguas indo-européias, o inglês, o espanhol e o português, no Novo Mundo gerou fenômenos culturais curiosos, entre eles uma espécie de competição entre seus falantes originais e aqueles que vivem nesta margem do Atlântico. Há várias razões para tal disputa, mas a principal é demográfica. Enquanto as populações de nosso continente eram minguadas e estavam submetidas às suas respectivas metrópoles, estas tomavam a difusão de suas línguas como prova de prestígio. Depois que as Américas começaram a sair da órbita européia, o quadro foi mudando.
Ainda nos anos 30 do século 20, o escritor inglês Ford Maddox Ford, discorrendo sobre a grandeza dos países anglófonos para sua platéia norte-americana, referia-se a 150 milhões de habitantes dos EUA e 500 ou 600 milhões de súditos do Império Britânico. Terminada a Segunda Guerra, no entanto, a Inglaterra se viu reduzida a uma potência mediana sob a proteção da gigantesca superpotência americana. E, pelo menos em termos culturais, algo semelhante abalou também as relações entre a península ibérica e a América Latina. Se o Reino Unido se tornou um país cuja população era cinco vezes menor que a dos EUA, a Espanha, por seu turno, não teve de conviver imediatamente com um rival assim, porque sua língua era falada em vários países menos populosos que a consideravam seu centro cultural. O trauma mais duro foi aquele que os portugueses absorveram com o rápido crescimento do Brasil.
Um dos fatores que mais incomodaram as antigas metrópoles coloniais foi a eclosão da cultura de massas. Para prosperar, sua indústria requer uma massa crítica de consumidores, mais especificamente um mercado doméstico substancial e, já que as Américas preenchiam melhor tais exigências, elas se tornaram inevitavelmente exportadoras de filmes, telenovelas e música popular para seus parentes no Velho Mundo, um colonialismo às avessas do qual este continua se ressentindo.
Caso se tratasse apenas da cultura de massas, a Inglaterra, a Espanha e Portugal ainda seriam capazes de defender seu orgulho ferido, proclamando-se os autênticos produtores de alta cultura em cada uma de suas línguas. Não que não haja, mesmo atualmente, muitos europeus que, num acesso proposital de cegueira, insistam que o Novo Mundo, em particular os Estados Unidos, não é nem será jamais um centro cultural, função reservada por toda eternidade para a Europa. Quem, no entanto, prefira lidar honestamente com a realidade não ignora, para ficarmos apenas na literatura, nomes como os de Jorge Luis Borges e William Faulkner, Machado de Assis e William Carlos Williams, César Vallejo e Octavio Paz, Carlos Drummond de Andrade e Emily Dickinson.
Há, todavia, um ramo literário no qual até a segunda metade do século passado, os praticantes europeus superavam quantitaviva e qualitativamente os do Novo Mundo: a tradução. Em parte devido a seu passado colonial, a Europa dispunha de mais conhecedores de línguas estrangeiras aptos a transportar as obras escritas naquelas para seu próprio idioma. No mercado tradutório, ingleses e espanhóis seguem rivalizando com os EUA e com a América Hispânica. A exceção somos nós.
Desde o final do século 19 o Brasil traduz mais e melhor do que Portugal. Por exemplo, os brasileiros produziram duas versões completas, em verso, dos poemas homéricos (as de Odorico Mendes e Carlos Alberto Nunes) antes que alguma fosse feita pelos portugueses. Quanto à "Divina Comédia" de Dante Alighieri, três traduções versificadas completas surgiram aqui antes da primeira lusitana, que só saiu nos anos 90. O mesmo vale para Shakespeare e Baudelaire, James Joyce e Balzac. Não obstante terem traduzido bem Torquato Tasso, John Milton ou Horácio, os portugueses deixaram trabalho de sobra para os brasileiros. Por quê?
Que o Brasil seja uma terra de imigrantes, contribuiu para que tivéssemos gente traduzindo do russo, húngaro, japonês etc. Isso, porém, não dá conta das traduções pioneiras dos clássicos nestes trópicos. Uma razão possível é a seguinte: mais cultos que eram, os intelectuais portugueses, uma vez que podiam ler os originais, não as julgavam necessárias. Além disso, Portugal pertencia à esfera cultural da França e, portanto, seus literatos achavam redundante verter obras disponíveis em francês. Se estas explicações forem pertinentes, a riqueza relativa de nosso legado tradutório é um bom exemplo da necessidade transformada em virtude.


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