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NELSON ASCHER
Metrópoles, colônias e traduções
As línguas indo-européias, a família à qual pertence a nossa, sobrepuseram-se às
outras, que eram faladas na Europa, cerca de 3.000 anos atrás.
Ninguém sabe direito que outros
idiomas eram falados antes no
continente, embora, provavelmente, o basco, uma língua sem
parentes conhecidos, seja um deles e o Etrusco, uma língua da península italiana que nos legou
documentos e inscrições ainda
não decifrados, seja outro.
Tampouco se tem muita certeza
a respeito do lugar de origem daquilo que os lingüistas chamam
de proto-indo-europeu, isto é, a
língua que os ancestrais de todos
os povos indo-europeus usavam
antes que esta se subdividisse ou
se ramificasse em suas dezenas de
descendentes. As hipóteses mais
antigas sugeriam as estepes a nordeste do mar Negro e ao norte do
mar Cáspio, enquanto os estudos
mais recentes, como os de Colin
Renfrew, preferem a Anatólia, região que hoje em dia pertence à
Turquia. Esteja onde estiver a origem dessa família, uma coisa é
certa: ela é uma das mais bem-sucedidas do planeta, tendo se espalhado por quase toda a Eurásia e,
no último meio milênio, pela extensão das Américas.
O enraizamento de três línguas
indo-européias, o inglês, o espanhol e o português, no Novo Mundo gerou fenômenos culturais curiosos, entre eles uma espécie de
competição entre seus falantes
originais e aqueles que vivem nesta margem do Atlântico. Há várias razões para tal disputa, mas
a principal é demográfica. Enquanto as populações de nosso
continente eram minguadas e estavam submetidas às suas respectivas metrópoles, estas tomavam
a difusão de suas línguas como
prova de prestígio. Depois que as
Américas começaram a sair da
órbita européia, o quadro foi mudando.
Ainda nos anos 30 do século 20,
o escritor inglês Ford Maddox
Ford, discorrendo sobre a grandeza dos países anglófonos para sua
platéia norte-americana, referia-se a 150 milhões de habitantes dos
EUA e 500 ou 600 milhões de súditos do Império Britânico. Terminada a Segunda Guerra, no
entanto, a Inglaterra se viu reduzida a uma potência mediana sob
a proteção da gigantesca superpotência americana. E, pelo menos
em termos culturais, algo semelhante abalou também as relações entre a península ibérica e a
América Latina. Se o Reino Unido se tornou um país cuja população era cinco vezes menor que a
dos EUA, a Espanha, por seu turno, não teve de conviver imediatamente com um rival assim, porque sua língua era falada em vários países menos populosos que a
consideravam seu centro cultural.
O trauma mais duro foi aquele
que os portugueses absorveram
com o rápido crescimento do Brasil.
Um dos fatores que mais incomodaram as antigas metrópoles
coloniais foi a eclosão da cultura
de massas. Para prosperar, sua
indústria requer uma massa crítica de consumidores, mais especificamente um mercado doméstico
substancial e, já que as Américas
preenchiam melhor tais exigências, elas se tornaram inevitavelmente exportadoras de filmes, telenovelas e música popular para
seus parentes no Velho Mundo,
um colonialismo às avessas do
qual este continua se ressentindo.
Caso se tratasse apenas da cultura de massas, a Inglaterra, a Espanha e Portugal ainda seriam
capazes de defender seu orgulho
ferido, proclamando-se os autênticos produtores de alta cultura
em cada uma de suas línguas.
Não que não haja, mesmo atualmente, muitos europeus que, num
acesso proposital de cegueira, insistam que o Novo Mundo, em
particular os Estados Unidos, não
é nem será jamais um centro cultural, função reservada por toda
eternidade para a Europa. Quem,
no entanto, prefira lidar honestamente com a realidade não ignora, para ficarmos apenas na literatura, nomes como os de Jorge
Luis Borges e William Faulkner,
Machado de Assis e William Carlos Williams, César Vallejo e Octavio Paz, Carlos Drummond de
Andrade e Emily Dickinson.
Há, todavia, um ramo literário
no qual até a segunda metade do
século passado, os praticantes europeus superavam quantitaviva e
qualitativamente os do Novo
Mundo: a tradução. Em parte devido a seu passado colonial, a Europa dispunha de mais conhecedores de línguas estrangeiras aptos a transportar as obras escritas
naquelas para seu próprio idioma. No mercado tradutório, ingleses e espanhóis seguem rivalizando com os EUA e com a América Hispânica. A exceção somos
nós.
Desde o final do século 19 o Brasil traduz mais e melhor do que
Portugal. Por exemplo, os brasileiros produziram duas versões
completas, em verso, dos poemas
homéricos (as de Odorico Mendes
e Carlos Alberto Nunes) antes que
alguma fosse feita pelos portugueses. Quanto à "Divina Comédia"
de Dante Alighieri, três traduções
versificadas completas surgiram
aqui antes da primeira lusitana,
que só saiu nos anos 90. O mesmo
vale para Shakespeare e Baudelaire, James Joyce e Balzac. Não
obstante terem traduzido bem
Torquato Tasso, John Milton ou
Horácio, os portugueses deixaram trabalho de sobra para os
brasileiros. Por quê?
Que o Brasil seja uma terra de
imigrantes, contribuiu para que
tivéssemos gente traduzindo do
russo, húngaro, japonês etc. Isso,
porém, não dá conta das traduções pioneiras dos clássicos nestes
trópicos. Uma razão possível é a
seguinte: mais cultos que eram, os
intelectuais portugueses, uma vez
que podiam ler os originais, não
as julgavam necessárias. Além
disso, Portugal pertencia à esfera
cultural da França e, portanto,
seus literatos achavam redundante verter obras disponíveis em
francês. Se estas explicações forem
pertinentes, a riqueza relativa de
nosso legado tradutório é um
bom exemplo da necessidade
transformada em virtude.
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