|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Senta que lá vem cultura
Quer rir de verdade? Rir "às
bandeiras despregadas",
para empregar a bela expressão
atualmente em desuso? Solicito,
neste caso, sua atenção para as
cenas que se seguem.
O marido entra cambaleante
em casa. É sábado, ele está bêbado, sem apetite para o almoço. A
mulher reclama: há muito tempo
não recebe, digamos, atenção do
parceiro. Também, pudera: os
anos se passaram, ela engordou,
está cheia de rugas.
Pouco importa se a atriz escalada para o papel é magra, bonitinha e aparenta menos de 30 anos.
Teatro, como dizem, é magia.
A vizinha, com roupa de biscate, entra em cena. Tropeça num
tapetinho e se estatela no chão.
Vamos rir? Melhor economizar as
gargalhadas: o diafragma humano é feito de tecido delicado e correrá o risco de romper-se com o
que vem pela frente.
Cacilda (a mulher mal-amada)
ouve atenta os conselhos da vizinha. Aparecerá mais tarde com
uma lingerie preta e sapatos de
salto alto. Comenta com a amiga.
"Quem disse que eu sou velha? A
dona de butique disse que eu era
uma senhora simpática!!"
Estamos rindo, é óbvio. Não
tanto quanto o marido, que repara finalmente na indumentária
sexy de Cacilda e dispara: "Pensei
que você tinha chegado de um velório!!". A mulher reage à altura:
"Só se for o velório da tua mãe!".
A platéia não tem como não rugir de alegria. Logo entra a vizinha de novo e... tropeça no tapetinho! Calma, minha gente, que
tem mais. Cacilda desiste da camisola preta. "Tomara que a dona da loja aceite a camisola de
volta. Se não, aí é que eu levo
mesmo uma comida!" O gesto,
com os dois punhos fechados em
direção ao púbis, explicita o que,
no texto, constava como um "jeu
de mots" dos mais sutis.
É tudo? Não. Uma surpresa nos
aguarda: Cacilda está sendo enganada. A descoberta envolve
uma laboriosa comparação entre
tipos de perfume feminino, que
são borrifados em vários retalhos
da camisa do marido.
Por que picotar a roupa com
uma tesoura? O detalhe recebe
pronta explicação. É que, confrontada com as evidências, Cacilda terá um acesso de fúria. "O
veado, o bêbado me traiu o tempo
todo!" Com a tesoura na mão
-estamos no auge cômico do espetáculo-, ela grita, forçando o
sotaque popular: "Vou cortar o
pinto dele. Ele vai acordar capado, com o pinto sangrando!".
Cacilda continua. "Pego a tesourinha e corto o saco dele." É a
deixa para todo mundo contorcer-se de riso. Mas um momento.
O que a atriz está fazendo agora?
Imita embaixadinhas de futebol
com os despojos imaginários do
marido.
Lamento se você não teve espasmos de hilaridade ao ler a descrição. Não posso continuar porque,
nesse momento, desliguei a TV.
Mas espetáculos como este -"E
Agora, Cacilda?", de João Carlos
Couto- podem ser vistos todas
as quartas-feiras, às 22h, no programa "Senta que lá Vem Comédia", da TV Cultura.
TV Cultura?
Não é aquela emissora "pública" que se propunha como alternativa de bom nível à baixaria
dos outros canais? Bem, os tempos
mudaram. Recheada de anúncios, a Cultura cai de boca (se me
permitem a expressão) no jogo infame da concorrência na TV
aberta e acaba por se render, como qualquer outra emissora de
terceira classe, ao popularesco, ao
grosseiro, ao regressivo.
Não tenho nada, em princípio,
contra estereótipos e palavrões
numa comédia. Falta de graça e
de talento pioram muito as coisas, mas podem ser perdoados,
quando não há outro jeito. Só que
o compromisso da TV Cultura deveria ser diferente. Perto de "Senta que lá Vem Comédia", até o
rastejante "Zorra Total", da TV
Globo, atinge altitudes dignas de
Marivaux.
Fui ver no dia seguinte o programa de Silvia Poppovic, outra
iniciativa no rumo da popularização, ou da comercialização, da
TV Cultura. O tema era construtivo: pessoas que, na meia-idade,
já planejam novas atividades para a aposentadoria. Um professor
de cursinho pretende ser dono de
restaurante e um casal por volta
dos 60 anos conta como foi a experiência de abrir uma pousada.
Nada de comprometedor, portanto, mas nada que superasse a
banalidade de um programa de
entrevistas do mesmo tipo em
qualquer canal comum. Duas
participantes do auditório, interpeladas por Silvia Poppovic, vieram até com uma resposta surpreendente. Disseram ser estudantes de estética.
"Olha aí", pensei, "afinal, é a
TV Cultura". Mas o equívoco se
dissipou em seguida. Elas não
cursavam filosofia: trabalhavam
num salão de beleza.
A comercialização acentuou-se
nos últimos tempos, mas não vem
de agora. Sempre impliquei ao
ver a TV Cultura transmitindo jogos de futebol, além de mesas-redondas dominicais sobre o assunto. Implico mais ainda com o lema "esporte é cultura". Não que
não seja. Mas o é num sentido a
que Globo, Record e Bandeirantes
sabem plenamente corresponder.
Quanto a mim, gostaria de ver na
TV Cultura mais o Sócrates original do que o seu xará corintiano.
Elitismo de minha parte? Acho
que não. Elitismo é deixar fora do
alcance da população pobre
-que, às vezes, se esforça loucamente para constituir bibliotecas
na favela- aquilo que a humanidade produziu de mais duradouro e inteligente. Elitismo é fazer da alta cultura privilégio de
minorias, enquanto se produz lixo para quem não conhece nem
tem tempo de conhecer outra coisa. Elitista é o sacrossanto mercado, que não irá arriscar o lucro
certo pela missão -que deveria
caber a uma emissora pública-
de tornar sua audiência mais informada, consciente e crítica.
Em artigo anterior, falei de uma
escultura de Francisco das Chagas, o "Cabra". Ela se encontra na
sacristia da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em Salvador, e
não em Recife, como eu pensava.
@ - coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Comportamento: House music junta 700 "chatôs" em hotel cinco estrelas Índice
|