São Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 2006

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MARCELO COELHO

Senta que lá vem cultura

Quer rir de verdade? Rir "às bandeiras despregadas", para empregar a bela expressão atualmente em desuso? Solicito, neste caso, sua atenção para as cenas que se seguem.
O marido entra cambaleante em casa. É sábado, ele está bêbado, sem apetite para o almoço. A mulher reclama: há muito tempo não recebe, digamos, atenção do parceiro. Também, pudera: os anos se passaram, ela engordou, está cheia de rugas.
Pouco importa se a atriz escalada para o papel é magra, bonitinha e aparenta menos de 30 anos. Teatro, como dizem, é magia.
A vizinha, com roupa de biscate, entra em cena. Tropeça num tapetinho e se estatela no chão. Vamos rir? Melhor economizar as gargalhadas: o diafragma humano é feito de tecido delicado e correrá o risco de romper-se com o que vem pela frente.
Cacilda (a mulher mal-amada) ouve atenta os conselhos da vizinha. Aparecerá mais tarde com uma lingerie preta e sapatos de salto alto. Comenta com a amiga. "Quem disse que eu sou velha? A dona de butique disse que eu era uma senhora simpática!!"
Estamos rindo, é óbvio. Não tanto quanto o marido, que repara finalmente na indumentária sexy de Cacilda e dispara: "Pensei que você tinha chegado de um velório!!". A mulher reage à altura: "Só se for o velório da tua mãe!".
A platéia não tem como não rugir de alegria. Logo entra a vizinha de novo e... tropeça no tapetinho! Calma, minha gente, que tem mais. Cacilda desiste da camisola preta. "Tomara que a dona da loja aceite a camisola de volta. Se não, aí é que eu levo mesmo uma comida!" O gesto, com os dois punhos fechados em direção ao púbis, explicita o que, no texto, constava como um "jeu de mots" dos mais sutis.
É tudo? Não. Uma surpresa nos aguarda: Cacilda está sendo enganada. A descoberta envolve uma laboriosa comparação entre tipos de perfume feminino, que são borrifados em vários retalhos da camisa do marido.
Por que picotar a roupa com uma tesoura? O detalhe recebe pronta explicação. É que, confrontada com as evidências, Cacilda terá um acesso de fúria. "O veado, o bêbado me traiu o tempo todo!" Com a tesoura na mão -estamos no auge cômico do espetáculo-, ela grita, forçando o sotaque popular: "Vou cortar o pinto dele. Ele vai acordar capado, com o pinto sangrando!".
Cacilda continua. "Pego a tesourinha e corto o saco dele." É a deixa para todo mundo contorcer-se de riso. Mas um momento. O que a atriz está fazendo agora? Imita embaixadinhas de futebol com os despojos imaginários do marido.
Lamento se você não teve espasmos de hilaridade ao ler a descrição. Não posso continuar porque, nesse momento, desliguei a TV. Mas espetáculos como este -"E Agora, Cacilda?", de João Carlos Couto- podem ser vistos todas as quartas-feiras, às 22h, no programa "Senta que lá Vem Comédia", da TV Cultura.
TV Cultura?
Não é aquela emissora "pública" que se propunha como alternativa de bom nível à baixaria dos outros canais? Bem, os tempos mudaram. Recheada de anúncios, a Cultura cai de boca (se me permitem a expressão) no jogo infame da concorrência na TV aberta e acaba por se render, como qualquer outra emissora de terceira classe, ao popularesco, ao grosseiro, ao regressivo.
Não tenho nada, em princípio, contra estereótipos e palavrões numa comédia. Falta de graça e de talento pioram muito as coisas, mas podem ser perdoados, quando não há outro jeito. Só que o compromisso da TV Cultura deveria ser diferente. Perto de "Senta que lá Vem Comédia", até o rastejante "Zorra Total", da TV Globo, atinge altitudes dignas de Marivaux.
Fui ver no dia seguinte o programa de Silvia Poppovic, outra iniciativa no rumo da popularização, ou da comercialização, da TV Cultura. O tema era construtivo: pessoas que, na meia-idade, já planejam novas atividades para a aposentadoria. Um professor de cursinho pretende ser dono de restaurante e um casal por volta dos 60 anos conta como foi a experiência de abrir uma pousada.
Nada de comprometedor, portanto, mas nada que superasse a banalidade de um programa de entrevistas do mesmo tipo em qualquer canal comum. Duas participantes do auditório, interpeladas por Silvia Poppovic, vieram até com uma resposta surpreendente. Disseram ser estudantes de estética.
"Olha aí", pensei, "afinal, é a TV Cultura". Mas o equívoco se dissipou em seguida. Elas não cursavam filosofia: trabalhavam num salão de beleza.
A comercialização acentuou-se nos últimos tempos, mas não vem de agora. Sempre impliquei ao ver a TV Cultura transmitindo jogos de futebol, além de mesas-redondas dominicais sobre o assunto. Implico mais ainda com o lema "esporte é cultura". Não que não seja. Mas o é num sentido a que Globo, Record e Bandeirantes sabem plenamente corresponder. Quanto a mim, gostaria de ver na TV Cultura mais o Sócrates original do que o seu xará corintiano.
Elitismo de minha parte? Acho que não. Elitismo é deixar fora do alcance da população pobre -que, às vezes, se esforça loucamente para constituir bibliotecas na favela- aquilo que a humanidade produziu de mais duradouro e inteligente. Elitismo é fazer da alta cultura privilégio de minorias, enquanto se produz lixo para quem não conhece nem tem tempo de conhecer outra coisa. Elitista é o sacrossanto mercado, que não irá arriscar o lucro certo pela missão -que deveria caber a uma emissora pública- de tornar sua audiência mais informada, consciente e crítica.

 

Em artigo anterior, falei de uma escultura de Francisco das Chagas, o "Cabra". Ela se encontra na sacristia da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em Salvador, e não em Recife, como eu pensava.

@ - coelhofsp@uol.com.br

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