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São Paulo, segunda-feira, 26 de maio de 2003

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NELSON ASCHER

No princípio era o que mesmo?

Desde que o homem é homem, um de seus hobbies favoritos, no intervalo entre caçar um mastodonte e ser caçado por um tigre-de-dente-de-sabre, tem sido o de especular sobre as origens do Universo. À pergunta "de onde é que viemos nós e todo o resto", cada tribo, povo ou etnia formulou uma ou diversas respostas distintas, que, aliás, não raro sendo incompatíveis entre si, soavam ainda mais misteriosas e, portanto, interessantes. Nenhuma, contudo, é tão estranha quanto a que a física atual oferece: a teoria do "big bang".
Como em muitas cosmogonias primitivas, essa hipótese sugere que tudo surgiu do nada, ou melhor, que algo assim como um ponto infinitesimalmente pequeno, cuja massa tendia ao infinito, de repente explodiu gerando (se é que esse é o termo) não só a energia e a matéria que, devido a um calor de milhões ou (o que, do meu ponto de vista, dá na mesma) bilhões de graus, não se tinham diferenciado ainda, mas, além disso, o espaço e o tempo.
De acordo com um cientista, o nosso não passa de um desses universos que acontecem de vez em quando.
O cérebro humano não parece capaz de dar forma a essa ausência de tempo, espaço, matéria e energia, de modo que, embora se consiga verbalizar o "big bang" e, por assim dizer, seu contexto, é impossível imaginá-lo. Mesmo descrever a impossibilidade é difícil, e uma espécie de paralelo seria o de que a idéia de três maçãs (três maçãs negativas) pode ser algebricamente formulada sem que seja visualizável.
Problema semelhante deve ter afligido, milênios atrás, algum poeta-sacerdote indiano quando ele resolveu ou foi encarregado de criar um hino sobre as origens. Não foi à toa que recorreu a uma linguagem de semicontradições e sentidos dúbios, antes da dúvida que da certeza dogmática, uma linguagem de paradoxos em que toda e qualquer afirmação se converte logo em indagação.
Graças ao sucesso desses subterfúgios, seu hino, preservado oralmente durante séculos até a escrita, que desaparecera, voltar a ser desenvolvida em torno do século 8 a.C. no subcontinente, foi incorporado ao "Rig Veda", a grande coletânea de poemas religiosos compostos pelos antigos hindus a partir, pelo menos, de 1300 a.C.
Reunindo 1.028 hinos numa forma arcaica do sânscrito, o "Rig Veda" ("veda" significa "saber", e "rigveda" se traduz como o "veda" estrófico) é o mais antigo documento literário indo-europeu que nos chegou. Seus textos, cuja maioria celebra divindades do panteão indo-ariano, como Agni, Mitra, Indra, Varuna e Vishnu, eram usados pelos membros do sacerdócio hereditário durante cerimônias sacrificiais que envolviam atirar ao fogo oferendas de grãos, pedaços de animais, manteiga derretida e "soma " (aparentemente uma bebida alucinógena extraída de uma planta não identificada).
Tal função ritual, bem como o papel central que ocupavam no hinduísmo (ou, como quer o estudioso francês Louis Renou, bramanismo), garantiu que os poemas sobrevivessem quase inalterados. No entretempo, tanto as transformações que fizeram sua língua desembocar, primeiro, no sânscrito clássico e, depois, em dezenas dentre os idiomas da região quanto profundas mudanças na própria religião tornaram palavras, frases e até mesmo estrofes inteiras relativamente obscuras.
Para traduzir o "Hino da Criação" (número 129 do livro 10), utilizei, por um lado, versões literais, que esmiuçam em detalhe cada palavra, a sintaxe e o sentido do original e, por outro, duas dúzias de traduções variadas. Se, como nos declara o Evangelho de São João, "no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus", um poeta três vezes milenar do Hindustão remete-nos a um momento que precede o princípio, Deus ou o "big bang", um momento sem verbo algum, no qual tudo estava prestes a ser criado por um inconcebível ponto de interrogação.


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