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NELSON ASCHER
No princípio era o que mesmo?
Desde que o homem é homem, um de seus hobbies
favoritos, no intervalo entre caçar
um mastodonte e ser caçado por
um tigre-de-dente-de-sabre, tem
sido o de especular sobre as origens do Universo. À pergunta "de
onde é que viemos nós e todo o
resto", cada tribo, povo ou etnia
formulou uma ou diversas respostas distintas, que, aliás, não raro
sendo incompatíveis entre si, soavam ainda mais misteriosas e,
portanto, interessantes. Nenhuma, contudo, é tão estranha
quanto a que a física atual oferece: a teoria do "big bang".
Como em muitas cosmogonias
primitivas, essa hipótese sugere
que tudo surgiu do nada, ou melhor, que algo assim como um
ponto infinitesimalmente pequeno, cuja massa tendia ao infinito,
de repente explodiu gerando (se é
que esse é o termo) não só a energia e a matéria que, devido a um
calor de milhões ou (o que, do
meu ponto de vista, dá na mesma) bilhões de graus, não se tinham diferenciado ainda, mas,
além disso, o espaço e o tempo.
De acordo com um cientista, o
nosso não passa de um desses universos que acontecem de vez em
quando.
O cérebro humano não parece
capaz de dar forma a essa ausência de tempo, espaço, matéria e
energia, de modo que, embora se
consiga verbalizar o "big bang" e,
por assim dizer, seu contexto, é
impossível imaginá-lo. Mesmo
descrever a impossibilidade é difícil, e uma espécie de paralelo seria
o de que a idéia de três maçãs
(três maçãs negativas) pode ser
algebricamente formulada sem
que seja visualizável.
Problema semelhante deve ter
afligido, milênios atrás, algum
poeta-sacerdote indiano quando
ele resolveu ou foi encarregado de
criar um hino sobre as origens.
Não foi à toa que recorreu a uma
linguagem de semicontradições e
sentidos dúbios, antes da dúvida
que da certeza dogmática, uma
linguagem de paradoxos em que
toda e qualquer afirmação se
converte logo em indagação.
Graças ao sucesso desses subterfúgios, seu hino, preservado oralmente durante séculos até a escrita, que desaparecera, voltar a ser
desenvolvida em torno do século
8 a.C. no subcontinente, foi incorporado ao "Rig Veda", a grande
coletânea de poemas religiosos
compostos pelos antigos hindus a
partir, pelo menos, de 1300 a.C.
Reunindo 1.028 hinos numa
forma arcaica do sânscrito, o "Rig
Veda" ("veda" significa "saber", e
"rigveda" se traduz como o "veda" estrófico) é o mais antigo documento literário indo-europeu
que nos chegou. Seus textos, cuja
maioria celebra divindades do
panteão indo-ariano, como Agni,
Mitra, Indra, Varuna e Vishnu,
eram usados pelos membros do
sacerdócio hereditário durante
cerimônias sacrificiais que envolviam atirar ao fogo oferendas de
grãos, pedaços de animais, manteiga derretida e "soma " (aparentemente uma bebida alucinógena extraída de uma planta não
identificada).
Tal função ritual, bem como o
papel central que ocupavam no
hinduísmo (ou, como quer o estudioso francês Louis Renou, bramanismo), garantiu que os poemas sobrevivessem quase inalterados. No entretempo, tanto as
transformações que fizeram sua
língua desembocar, primeiro, no
sânscrito clássico e, depois, em dezenas dentre os idiomas da região
quanto profundas mudanças na
própria religião tornaram palavras, frases e até mesmo estrofes
inteiras relativamente obscuras.
Para traduzir o "Hino da Criação" (número 129 do livro 10), utilizei, por um lado, versões literais,
que esmiuçam em detalhe cada
palavra, a sintaxe e o sentido do
original e, por outro, duas dúzias
de traduções variadas. Se, como
nos declara o Evangelho de São
João, "no princípio era o Verbo, e
o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus", um poeta três vezes
milenar do Hindustão remete-nos a um momento que precede o
princípio, Deus ou o "big bang",
um momento sem verbo algum,
no qual tudo estava prestes a ser
criado por um inconcebível ponto
de interrogação.
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