|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"A Fome de Todos Nós"
Americano universaliza o conceito da classe média em coletânea de histórias
MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA
Além de ser a vítima preferencial de qualquer
crítico de costumes que
se preze, a classe média também costuma sofrer quando vira matéria de ficção. Não só
porque seus hábitos não são lá
muito emocionantes, o que não
gera narrativas à altura, mas
também porque não é comum
se levar a sério as angústias
existenciais de quem tem emprego estável, casamento pacífico e futuro garantido -angústias que, num outro contexto,
Tom Wolfe maldosamente
chamou de "desejos obscuros".
De certa forma, o desafio que
o norte-americano David
Eggers se impõe em "A Fome
de Todos Nós", coletânea de
histórias que acaba de sair no
Brasil, é inverter essa dificuldade. Ou seja, numa vaga tradição
moderna de autores como
John Cheever e John Updike,
dar colorido suficiente ao imaginário de tipos mais ou menos
bem-sucedidos, envolvidos
com desencontros amorosos
banais, pequenas perdas ou
apenas com o próprio tédio.
Para tanto, ele escolhe duas
estratégias básicas. A primeira,
que segue um pouco a linha de
"Uma Comovente Obra de Espantoso Talento" (Rocco), livro
memorialístico que o revelou, é
a do humor irônico, às vezes satírico.
Ela está presente em contos
como "Notas à História de um
Homem que Não Morrerá Sozinho", em que um sujeito deseja
dar seu último suspiro diante
da platéia de um estádio, e "Naveed", história de uma garota
que arruma seu décimo quarto
amante apenas para não ser alvo de uma piada.
A segunda opção é por um registro mais sutil e dramático,
que está em textos como "Outro", sobre a visita de um homem às pirâmides do Egito, e
"O Único Significado da Água
Suja de Óleo", relato de uma
aventura sexual entre dois amigos no Caribe.
Duas abordagens
A diferença entre ambas as linhagens, digamos assim, é justamente a maneira como Eggers enxerga o fenômeno da
classe média. No primeiro caso,
sua abordagem é distante, com
os dramas vistos de cima, como
que ratificando a tese de Wolfe
de que o intimismo e o ensimesmamento têm muito de irrelevante e ridículo. É um recurso que funciona algumas vezes, até porque o autor tem o
"timing" da comédia, mas que
em outras enseja piadas um
tanto óbvias (caso de "Há Certas Coisas que Ele Deveria
Guardar para Si", título seguido
por várias páginas em branco).
A abordagem mais "séria",
por sua vez, aproxima o leitor
dos personagens, num processo de identificação que, ao menos em termos clássicos, é condição para se obter empatia.
Na contramão do exemplo
anterior, tais criaturas são vistas com piedade e tolerância, e
seus "desejos obscuros" são
traduzidos numa linguagem
que potencializa a sua intensidade ambígua, indizível, em vez
de rebaixá-la.
No saldo, "A Fome de Todos
Nós" carrega mais essa delicadeza do que a condescendência
inerente ao sarcasmo. Acaba
sendo um bom resultado, ainda
mais para um livro que, desde o
título, parece se interessar pelo
que há de generoso na falibilidade de seus protagonistas.
Quando isso consegue vir à tona, o que nem sempre é fácil, a
classe média se torna um conceito literariamente universal.
MICHEL LAUB é autor dos romances "O Segundo Tempo" (2006) e "Longe da Água" (2004),
ambos da Companhia das Letras.
A FOME DE TODOS NÓS
Autor: David Eggers
Tradução: Antonio de Moura Filho
Editora: Rocco
Quanto: R$ 32 (232 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Crítica/ficção juvenil: Antonio Risério mostra utopia da fraternização na "verdadeira" Salvador Índice
|