São Paulo, sábado, 26 de maio de 2007

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Crítica/"A Fome de Todos Nós"

Americano universaliza o conceito da classe média em coletânea de histórias

MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA

Além de ser a vítima preferencial de qualquer crítico de costumes que se preze, a classe média também costuma sofrer quando vira matéria de ficção. Não só porque seus hábitos não são lá muito emocionantes, o que não gera narrativas à altura, mas também porque não é comum se levar a sério as angústias existenciais de quem tem emprego estável, casamento pacífico e futuro garantido -angústias que, num outro contexto, Tom Wolfe maldosamente chamou de "desejos obscuros".
De certa forma, o desafio que o norte-americano David Eggers se impõe em "A Fome de Todos Nós", coletânea de histórias que acaba de sair no Brasil, é inverter essa dificuldade. Ou seja, numa vaga tradição moderna de autores como John Cheever e John Updike, dar colorido suficiente ao imaginário de tipos mais ou menos bem-sucedidos, envolvidos com desencontros amorosos banais, pequenas perdas ou apenas com o próprio tédio.
Para tanto, ele escolhe duas estratégias básicas. A primeira, que segue um pouco a linha de "Uma Comovente Obra de Espantoso Talento" (Rocco), livro memorialístico que o revelou, é a do humor irônico, às vezes satírico.
Ela está presente em contos como "Notas à História de um Homem que Não Morrerá Sozinho", em que um sujeito deseja dar seu último suspiro diante da platéia de um estádio, e "Naveed", história de uma garota que arruma seu décimo quarto amante apenas para não ser alvo de uma piada.
A segunda opção é por um registro mais sutil e dramático, que está em textos como "Outro", sobre a visita de um homem às pirâmides do Egito, e "O Único Significado da Água Suja de Óleo", relato de uma aventura sexual entre dois amigos no Caribe.

Duas abordagens
A diferença entre ambas as linhagens, digamos assim, é justamente a maneira como Eggers enxerga o fenômeno da classe média. No primeiro caso, sua abordagem é distante, com os dramas vistos de cima, como que ratificando a tese de Wolfe de que o intimismo e o ensimesmamento têm muito de irrelevante e ridículo. É um recurso que funciona algumas vezes, até porque o autor tem o "timing" da comédia, mas que em outras enseja piadas um tanto óbvias (caso de "Há Certas Coisas que Ele Deveria Guardar para Si", título seguido por várias páginas em branco).
A abordagem mais "séria", por sua vez, aproxima o leitor dos personagens, num processo de identificação que, ao menos em termos clássicos, é condição para se obter empatia.
Na contramão do exemplo anterior, tais criaturas são vistas com piedade e tolerância, e seus "desejos obscuros" são traduzidos numa linguagem que potencializa a sua intensidade ambígua, indizível, em vez de rebaixá-la.
No saldo, "A Fome de Todos Nós" carrega mais essa delicadeza do que a condescendência inerente ao sarcasmo. Acaba sendo um bom resultado, ainda mais para um livro que, desde o título, parece se interessar pelo que há de generoso na falibilidade de seus protagonistas. Quando isso consegue vir à tona, o que nem sempre é fácil, a classe média se torna um conceito literariamente universal.


MICHEL LAUB é autor dos romances "O Segundo Tempo" (2006) e "Longe da Água" (2004), ambos da Companhia das Letras.

A FOME DE TODOS NÓS
Autor:
David Eggers
Tradução: Antonio de Moura Filho
Editora: Rocco
Quanto: R$ 32 (232 págs.)
Avaliação: bom


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