São Paulo, sábado, 26 de maio de 2007

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Crítica/antologia

Marcelo Coelho cria cartografia particular da vida cultural do país

"Tempo Medido" traz seleção de colunas publicadas pelo jornalista na Ilustrada

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Facilmente um leitor assíduo da coluna de Marcelo Coelho na Ilustrada poderia pensar que ler esses mesmos textos agrupados em um livro seria redundante. Nada mais enganoso. Juntos, os textos já conhecidos formam uma espécie de cartografia da vida cultural brasileira apanhada de um ponto de vista particular que, agora mais que antes, abre horizontes inesperados.
Isto porque o cronista do jornal se transfigura em um narrador, e as crônicas se tornam um mapa das esquisitices cotidianas.
Um narrador inteligente, às vezes hesitante, às vezes melancólico, estabelece relações inesperadas entre matérias diversas (do Iluminismo à iluminação das casas após o apagão de FHC). O movimento da história recente sai do fundo para um plano estranho, às vezes grotesco e sempre familiar.
E esse narrador é muito peculiar: um descendente de Barthes que foge das "Mitologias", um adorniano delicado, um uspiano da linha de Roberto Schwarz que desconfia do marxismo tanto quanto de si mesmo. Um tipo paulistano fino (mas sem ser "cool"), quase-jornalista, quase-boêmio, quase-catedrático, que escreve como quem põe e tira os óculos, aproxima e afasta. Por isso, entra nos assuntos através de espaços que a gente desconhecia. O narrador de Marcelo Coelho é um sujeito simpático que descobre segredos que ninguém sabia que estavam guardados.
Segredos de colecionador que discretamente junta as peças do mosaico de nossas graças e de nossas barbaridades. O próprio autor diz que os textos escolhidos para este volume são "mais agradáveis de ler" porque tratariam de assuntos menos "importantes". Mas como assim? Um ensaio discretamente explosivo acerca-se do slogan do governo Lula sobre a persistência do "brasileiro" para concluir que, além da voga nacionalista, vivemos em uma época na qual os marqueteiros "apostam no nosso narcisismo, a que chamam de auto-estima" para daí nos avisar: "desistir você não vai, deixar o país você não pode, de modo que é melhor você agüentar tudo quietinho. Sorria. Você agüenta tão bem que terminará se orgulhando disso".
Talvez menos "importante" seja o tema de outra crônica sobre "os prazeres de usar xampu", que começa assim: "Em qualquer assunto, o pessimismo é sempre recomendável". Daí o narrador parte para um passeio no supermercado, por sua incipiente calvície, pelos mitos sobre a Amazônia e os royalties das multinacionais, para então concluir: "Não sou pessimista. Não enquanto ainda tiver cabelo na cabeça -a cobrir de xampu, de condicionador, de flores, de ervas e de crenças".

Estratégia de choque
A estratégia, se é que podemos chamar assim, é de choque. Um insight iluminado junta coisas distintas que se revelam a partir desse encontro.
Freqüentemente, é o choque peculiar entre o moderno e o atrasado (e entre o que há de moderno no atraso e de atrasado no moderno) que dá o tom, como na famosa "imagem tropicalista". Só que nenhum escritor do jornalismo brasileiro atual é tão pouco "tropicalista" quanto ele. E esse não é o menor de seus méritos.
Mas como se completaria a tal "cartografia" mental do Brasil exposta por este cronista, que é na verdade um narrador-ensaísta antitropicalista? Talvez, depois dessa nova reunião de seus textos, leitores e críticos acordem para o Marcelo Coelho escritor (o narrador "de verdade") e notem que seu romance "Jantando com Melvin" (ed. Imago) é fundamental para que se complete o mapa do seu mundo particular -e do nosso.


FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea na USP.

TEMPO MEDIDO
Autor:
Marcelo Coelho
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 39 (400 págs.)
Avaliação: ótimo


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