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DRAUZIO VARELLA
Invenção demoníaca
Com o passar dos anos, os tentáculos desse polvo eletrônico me enlaçaram até a asfixia
DESCONFIO QUE Satanás inventou o e-mail só para me
infernizar.
Desde que caí nessa armadilha
criada pelo Maligno com o objetivo
precípuo de transformar minha
existência num vale de dívidas eternas, vivo sufocado pelas mensagens
que chegam feito nuvens de gafanhotos.
Anos atrás, embasbacado com essa ousadia da informática que jurava
simplificar a rotina, acabar com cartas, selos, rolos de fax e com o tempo
desperdiçado ao telefone, além de
colocar em rede a humanidade inteira, atirei-me em seus braços com
determinação.
Suportei com galhardia os dissabores das horas noturnas de trabalho extra anteriormente destinadas
ao lazer e ao convívio familiar. O ganho de rendimento e a sensação de
viver "online" com o mundo valiam
o sacrifício.
Por meio do e-mail podia discutir
os casos de meus pacientes, conversar com escritores, ter acesso a pessoas que jamais teria conhecido em
outras circunstâncias e manter contato com amigos que não tenho tempo de ver.
Com o passar dos anos, o correio
eletrônico melhorou a performance
e acelerou meu ritmo de trabalho
com tanta fúria que se tornou imprescindível. Com o celular no bolso
e a tela do computador à frente eu
me sentia Clark Kent pronto para
virar Super-Homem, assim que a
ocasião se apresentasse.
Como eu, milhões de incautos embarcaram de corpo e alma nessa trama do Coisa Ruim, e a popularização
trouxe a banalização, sua companheira inseparável.
Basta um conhecido receber um
desses malditos textos musicados
ou uma gracinha qualquer, e você
ter o infortúnio de fazer parte da lista de vítimas preferidas dele, pronto:
é mais uma bobagem para ler, no
meio dos assuntos sérios. Como não
é fácil adivinhar o conteúdo do arquivo recebido sem abri-lo, você fica
tamborilando na mesa enquanto
aguarda aqueles bites inúteis se materializarem na tela.
E a publicidade que chega em
massa com promessas incríveis, como as de aumentar o tamanho de
seu pênis, de revitalizá-lo com medicamentos e aparelhos e de fazer da
sua a mais feliz das mulheres.
A face mais cruel dessa praga escravocrata, entretanto, vem à tona
quando alguém exclama com ar de
contrariedade:
- Você não recebeu o meu e-mail?
Ao ouvir essa pergunta sou invadido pelas culpas somadas de todos os
judeus que passaram pelo mundo,
dos cristãos diante de Jesus crucificado e de todas as mulheres que tiveram filhos.
Meu Deus, como pude deixar de
ver o tal e-mail? Devo ser vagabundo, irresponsável e incapaz de acompanhar a velocidade dos dias modernos. Se meu pai voltasse à vida, morreria de vergonha.
No início, até que os atrasos para
esvaziar minha caixa de entrada
eram razoáveis: um assunto menos
importante, uma resposta que podia
esperar ou um recado que ficava
dois ou três dias sem ser lido; nada
que tomasse muito tempo para colocar em ordem.
Com o passar dos anos, no entanto, os tentáculos desse polvo eletrônico me enlaçaram até a asfixia. Minha caixa de entrada virou calamidade pública.
Na semana passada, trabalhei até
tarde todos os dias. Chegar em casa
às dez da noite, tomar banho, jantar
e ir para o computador. Não é tarefa
alvissareira para quem acorda às 6h.
Apesar de haver respondido algumas mensagens durante os dias da
semana, domingo havia 128 à espreita para me enlouquecer. Respondi
quase 40 e deixei as demais para os
dias seguintes.
Não é fácil abrir o computador no
meio da correria diária, mas imbuído dos melhores princípios cristãos
fiz o que pude: consegui me livrar de
20 ou 30 por dia.
Adiantou? É como navegar contra
a maré em canoa furada: no fim de
semana seguinte havia 132.
Por isso, quero pedir desculpas a
meus credores; procurei ser bom filho, bom pai, bom marido e cidadão
cumpridor dos deveres, mas, antes
de perder a razão, decidi comunicar-lhes que meu e-mail entrou em concordata por tempo indeterminado.
Ele poderá argumentar que sou
mal-agradecido, que sem ele não teria conseguido escrever livros nem
fazer metade do que fiz. Estou de
acordo, mas prefiro passar por ingrato e até por mau-caráter do que
acabar no hospício.
Além do mais, quem ele pensa que
é? Meu patrão? Acha que passei a vida estudando para acabar escravo?
Lamento o inconveniente, mas
não estou em condições psicológicas
de prever a duração da atual concordata. A julgar pelo estado de espírito
em que me encontro, não descarto a
possibilidade de que no final dela venha a ser decretada a falência do d.varella@uol.com.br.
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