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ENTREVISTA DA 2ª
CAETANO VELOSO
Brasileiro adora dizer que o Brasil não presta
Músico critica a esquerda paulista, defende Mangabeira Unger e reclama
da "inércia" no país, "salvo-conduto para cada um se mostrar irresponsável"
NA SAÍDA DO SHOW de Caetano Veloso no
Rio, uma celebridade diz que amou "Ordem e Progresso", o novo espetáculo do
cantor baiano. Ordem e progresso? A
bandeira pública de Caetano é outra: "Obra em Progresso" -espetáculo em cartaz às quartas, no Vivo
Rio, no aterro do Flamengo, Rio, até 18 de junho, no
qual o repertório mistura músicas inéditas e releituras. Mas a variação paródica do lema positivista estampado no símbolo nacional não é ruim para servir
também como análise sobre a realidade brasileira. O
país é como o show: obra em progresso.
PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO
Caetano, 65, reclama da existência de uma "inércia de o Brasil ter sido desimportante" que
puxa para trás os que tentam
fazer coisas importantes por
aqui. "As pessoas ficam com
medo de assumir responsabilidade. Isso é inconsciente, mas é
verdade. Brasileiro adora dizer
que o Brasil não presta."
Caetano se apresenta na Europa em julho e agosto e depois
volta ao Rio para a continuidade dos shows, do qual resultará
o novo disco. Daí "Obra em
Progresso". Na sexta, falou à
Folha sobre show, disco e também sobre ordem e progresso.
FOLHA - O título do novo disco será
"Transamba"?
CAETANO VELOSO - Não sei se será o título do disco. É o apelido
que dou para o negócio que a
gente está fazendo. Pode ser o
título do disco, pode ser que
não. Essa palavra veio na minha cabeça porque tem muito a
ver com o que a gente está buscando. E a palavra "transa" [título de LP de 1972] está ali inteirinha. Como trabalho musical é um aprofundamento do
diálogo entre eu e os três músicos. A criação deste som que ficou bacana no "Cê". Estamos
aprofundando por um lado que
nem estava sugerido no "Cê".
FOLHA - Por que fazer uma canção
chamada "Baía de Guantánamo",
uma das inéditas do show?
CAETANO - Eu lia sobre aquilo
na imprensa, mas nunca imaginei fazer uma canção. Quando
eu vi o filme "Caminhos de
Guantánamo" [produção inglesa de 2006], parte ficção, parte
documentário, comentando
com uma pessoa amiga, num e-mail, eu coloquei aquela frase
["O fato de os americanos desrespeitarem os direitos humanos em solo cubano é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar"]. Fiquei
com ela na cabeça.
É um negócio seco, ficou só
aquilo. É uma frase que dá conta do mal-estar que senti diante daquela situação irregular
quanto aos direitos humanos,
produzida pelos americanos na
ilha de Cuba, onde eles têm a
base de Guantánamo desde o
século 19. Se você falar em
questão de como são observados os direitos humanos e as
questões de liberdade e respeito aos homens, sou 100% mais
EUA do que Cuba. E eles, os
americanos, os defensores das
sociedades abertas, apresentam muitas vezes o caso de Cuba, como um lugar onde não se
respeitam as liberdades. Que
aconteça isso na base de Guantánamo, sendo que são os americanos que estão desrespeitando os direitos humanos, me
abala, me provoca mal-estar.
Justamente porque eu sou neste ponto do lado dos americanos. Se eu fosse o tipo de cara
de esquerda, pró-Cuba, anti-EUA, não seria nenhum abalo
para mim.
FOLHA - Que reflexos terá nos EUA
a disputa Obama ou Hillary contra
McCain na sua opinião?
CAETANO - Uma coisa boa é que
vai acabar a administração
Bush. Todo mundo sabe que a
Hillary Clinton apresentava
uma maturidade maior, um
traquejo maior em política, o
modo como falava, se apresentava. Mas Obama é um sujeito
mais simpático. Ele é mais bonito, parece mais sincero. Tem
um atrativo pessoal, não é um
atrativo técnico. Obama parece
meu pai, é um mulato, parece
um cara de Santo Amaro [cidade baiana onde Caetano nasceu]. Me sinto mais próximo
dele do que daquela mulher
que parece uma perua de tailleur. Adorei o discurso dele sobre raça. É uma abordagem
mais brasileira, multipolar, reconhecendo a mestiçagem.
Sem se resumir àquela coisa bipolar americana. Ouvi dizer
que ele mesmo disse: pareço
mais um brasileiro. De fato.
FOLHA - Obama foi aluno de seu
amigo Mangabeira Unger, que, depois de dizer que o governo Lula era
o mais corrupto da história, assumiu
um cargo de ministro de Assuntos
Estratégicos.
CAETANO - É normal. Mangabeira sempre militou com suas
idéias à esquerda. Esteve ligado
ao PDT e ao Brizola por muito
tempo, depois por um período
bem mais curto a Ciro Gomes,
no que, aliás, coincidia totalmente comigo. Foi José Almino Alencar [sociólogo e escritor] quem me chamou a atenção para que lesse os artigos
dele na Folha. Eu li e gostei
muito. Li o livro dele "Paixão".
Li muito de "Política". Li esse
livro de filosofia que se chama
"The Self Awakened". Tenho
muito interesse nele porque
parece pôr a discussão política
brasileira num nível diferente
do habitual. Pensa de uma maneira que pode ser produtiva.
Ele vem tentando se aproximar
do poder real para fazer com
que algumas idéias dele sejam
testadas, experimentadas, postas em prática. Pouco antes de
Lula ganhar em 2002, ele escreveu na Folha, naquela coluna estreitinha da segunda página, que não era hora de discutir. Lula iria ganhar, então tinha de colaborar com ele. Foi o
que ele fez.
FOLHA - Mas depois afirmou que
era o governo mais corrupto da história.
CAETANO - A história do mensalão foi realmente um escândalo, uma porcaria, uma coisa
nojenta gritante. Alguns outros
episódios assim vêm acontecendo, como esse -menor, porém não menos nojento- do
novo dossiê, com Dilma e todo
esse negócio. O Mangabeira,
quando do episódio do mensalão, criticou durissimamente.
Quando Lula chamou, ele aceitou, porque é coerente com o
projeto que tem: aproximar-se
do poder, dando forças à esquerda, para experimentar
idéias produtivas de esquerda.
Por que justamente esse escrúpulo, que ninguém exige nem
do próprio Lula? Foi a única
coisa que a imprensa exigiu do
Mangabeira quando ele foi chamado. Tem duas coisas aí: uma
que o Mangabeira não é muito
simpático, apesar de, para
mim, ele ser um sujeito espetacular. Mas ele também não faz
muita questão de ser afável como os outros brasileiros. Ele
mostra aquele aspecto prussiano para marcar diferença. Deseja marcar um certo distanciamento, contribui para que
ficasse antipático para os jornalistas. Mas também a rejeição é por causa da novidade, da
criatividade do pensamento
dele. É uma mistura de ciúme e
medo de experimentar verdadeiras mudanças até de pensar.
Vejo assim. Você entendeu o
que eu disse?
FOLHA - Por que acha que ele é folclorizado?
CAETANO - Porque todas as pessoas que tentam coisas importantes para o Brasil sofrem
com essa inércia de o Brasil ter
sido desimportante, uma espécie de salvo-conduto para cada
um se mostrar irresponsável
na sua área. As pessoas ficam
com medo de assumir responsabilidade. Isso é inconsciente,
mas é verdade. Brasileiro adora
dizer que o Brasil não presta,
que a língua portuguesa é uma
porcaria, que todo mundo escreve errado e ninguém reclama. Tudo aqui é desrespeitado.
Tudo que aponte para um negócio que crie responsabilidade... O Brasil vem fazendo isso,
está crescendo, se afirmando,
apesar disso... Essa força que
puxa para trás, que segura, que
dificulta é enorme. Essa reação
a Mangabeira é uma manifestação disso.
FOLHA - Você não está com o governo, mas o governo está com você
ao menos em relação a amigos como Mangabeira e Gilberto Gil.
CAETANO - Cara, fui crítico do
Lula, sou crítico do Lula e do
governo, mas sou um crítico
modesto. Porque não sou cientista político nem faço política
nem quero me meter. Mas Lula
não é qualquer pessoa. Não é
um episódio de somenos importância. Desde que fiz 18
anos, gosto de votar. Meu pai
me botou na cabeça que isso
tem um valor cívico e me emociono, me lembro de meu pai.
Gosto desse ritual democrático. Mas nunca chorei dentro da
cabine. Só quando votei em Lula. Fiquei emocionado, meus
olhos encheram d'água. É porque era Lula. Não é assim. Não
é fácil. Quando vejo o povo brasileiro continuar, atrasadissimamente, na festa da posse de
Lula -a única coisa que aconteceu até hoje- entendo. Me
identifico com esse sentimento. Eu também sou moreno como vocês (risos). O fato é que
não se pode perder a objetividade e a exigência crítica. A tradição latino-americana é de
pais da pátria, caudilhos, líderes populistas. Recaídas nisso
são freqüentes e um risco permanente. Não quero ser condescendente com esse negócio.
FOLHA - Como vê a possibilidade
de a sucessão de Lula caminhar para
a disputa entre a ministra Dilma
Rousseff e o governador José Serra?
CAETANO - Dilma pelo menos
não é de São Paulo, não é da
USP. Serra não é propriamente
USP, mas essa esquerda paulista já encheu, já deu o que tinha
que dar. E é o que Lula é também.
FOLHA - Por que você assinou o
manifesto contra as cotas raciais?
CAETANO - Acho muito complexo, discutível, mas neste momento assinei contra para dar
força... A maioria das pessoas
que, como eu, vem da posição
de esquerda, gente legal, todo
mundo tem que ser a favor... A
maioria dos grupos de movimento negro -não todos, porque há um grupo de movimento negro que assinou contra, o
Movimento Negro Socialista.
Assinei para dar um peso a esta
outra posição. Tem valor abordar o assunto, mas não acho
que seja um negócio simples
assim aplicar cotas, como os
americanos já fizeram. A sentimentalização das relações desiguais que se dá na sociedade
influiu no modo como se encara a questão racial brasileira
também para o bem e para o
mal. Já deveríamos ter negros
em posições mais visíveis. Pessoas visivelmente negras. Acho
que é coerente que nos EUA
aconteça isso e no Brasil não. O
governo mais conservador que
os EUA teve nas últimas décadas foi o governo Bush. E a figura forte de seu governo é
uma mulher negra. Isso é resultado de uma luta aberta nos
EUA. E aqui, como nunca houve uma luta aberta...
FOLHA - Nosso racismo cordial...
CAETANO - É. Acho que é bacana, um jeito do Brasil que o
Brasil tem de resolver com as
suas complexidades... Não venham para cá importar racialismo americano...
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