São Paulo, terça-feira, 26 de maio de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A vida não nos pertence


Existe uma linha tênue entre aceitar a morte de uma pessoa e abandonar uma pessoa à morte


TENHO PENSADO na morte ultimamente. Não é novidade, eu sei. Mas, dessa vez, não falo da minha. Falo da nossa. O Partido Socialista Português, atualmente no governo do país, aprovou um projeto que consagra o "testamento vital". Explico: qualquer português poderá expressar por escrito os tratamentos médicos que deseja ou não receber caso perca a sua autonomia por doença grave. O projeto, que agora será discutido no Parlamento luso, será aprovado por todos os partidos políticos.
Em declarações públicas, todos os partidos políticos sublinharam o mesmo princípio: é preciso respeitar a autonomia individual e não prolongar inutilmente o sofrimento do doente. Como discordar da sensatez do argumento? E, no entanto, eu discordo. Ou, pelo menos, tenho dúvidas. Já escrevi nesta Folha que sou contra tratamentos médicos invasivos, dolorosos e absolutamente inúteis. Sou contra a obstinação terapêutica que se limita a manter um cadáver ligado a uma máquina. Se o "testamento vital" se limita a esses tratamentos, assino por baixo.
O problema é que existem tratamentos e tratamentos. E a questão começa a ganhar contornos mais complexos, e mais macabros, quando os cuidados médicos incluem água, alimentação e outras medidas banais. Será tolerável privar o indivíduo de água e alimentação, o que naturalmente implica matá-lo de sede e de fome? Mesmo que ele esteja incapacitado, ou moribundo?
Duvido. E duvido porque existe uma linha, tênue e quase imperceptível, entre aceitar a morte de um ser humano e abandonar um ser humano à morte. Os defensores do "testamento vital" não negam essa diferença; mas acrescentam, usando o trunfo aparentemente imbatível, que foi o próprio quem decidiu assim. A vida pertence a quem a vive. A autonomia individual, o valor supremo das nossas sociedades liberais, deve ser respeitado.
Acontece que a autonomia individual nem sempre deve ser respeitada. E não deve ser respeitada porque o indivíduo nem sempre é o melhor juiz da sua própria causa. Anthony Daniels, em artigo recente para a revista "The New Criterion" ("Do We Own Our Lives?", fevereiro de 2009), reforça precisamente essa ideia: quando nos confrontamos com alguém disposto a acabar com a sua vida, que atitude tomamos? Respeitamos a autonomia do sujeito? Ou, pelo contrário, estamos pouco nos lixando para essa autonomia?
A resposta é evidente. Se pudermos, impedimos alguém de saltar de uma ponte; de tomar a dose letal de comprimidos; de pendurar uma corda e enforcar-se nela. O suicida potencial pode informar-nos, oralmente ou por escrito, que a decisão é sua; que a sua autonomia deve ser respeitada; que a vida é dele e apenas dele; e que continuar a viver não faz parte dos seus interesses.
Indiferente. Não conheço nenhum ser humano que, testemunhando a iminência do ato, não faça tudo o que estiver ao seu alcance para evitar o desfecho fatal. O argumento da autonomia pode ser simpático para mentes supérfluas; mas não resiste a uma investigação mais cuidadosa. A crença radicalmente solipsista de que habitamos uma ilha de direitos e vontades ignora, ou então propositadamente despreza, a teia de ligações e mesmo de obrigações que temos uns para com os outros.
A nossa autonomia não é o valor fundamental da existência humana; é apenas um dos valores possíveis com que gerimos as nossas vidas, no contexto geral das vidas dos outros.

 


P.S. - As cartas estão em vias de extinção? Semanas atrás, escrevi que sim. Trocamos e-mails, "torpedos" e outras formas de comunicação que não deixam rastro. Mas a velha carta, redigida e enviada com tempo e dedicação, faz parte do passado. Hoje, quando muito, recebemos cartas do banco. Impessoais. Maquinais. E, no meu caso, nem essas: com a internet e suas infinitas possibilidades, passam-se meses sem correspondência pela manhã.
Pois bem: leitores desta Folha leram o meu texto e decidiram desmentir o cronista. Ou, no mínimo, consolá-lo. Até ao momento, recebi 73 cartas de todas as formas e feitios: sérias, divertidas, ternurentas, lacrimejantes, coloridas, perfumadas. E três pedidos de casamento, que irei ponderar com seriedade assim que a legislação portuguesa (ou brasileira) permitir a poligamia. Prometo responder a cada uma delas pelo meu próprio punho. Amor com amor se paga.

jpcoutinho@folha.com.br


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