São Paulo, terça-feira, 26 de junho de 2001

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ERUDITO

A vontade de tirar a roupa em "Sagração"

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Vontade de tirar a roupa, dançando a "Sagração da Primavera'", como dizem os Pet Shop Boys. Vontade todo mundo tem, mas nem sempre uma "Sagração" à altura: ao vivo, 103 músicos explodindo em maravilhas e brutalidades, um cataclismo sonoro, não só dentro, mas fora da cabeça.
Não seria a verdade factual dizer que a "Sagração" foi dada pela primeira vez aos brasileiros pelos brasileiros na semana passada pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Mas provavelmente é uma verdade da música. Outras tentativas, até onde se sabe, não valeram.
A "Sagração" continua tão insólita e, ao mesmo tempo, tão natural hoje como em 1913. O modernismo ali transcende a noção de estilo. Dá a impressão de chegar a um limite da condição humana crua, para não dizer nua.

Soberano
Nem nua nem, muito menos, crua, a mais russa das músicas foi interpretada pelo maestro John Neschling, sábado passado, sem "russismos" e sem exotismos, mas sem perder uma dose de loucura jamais. Neschling manteve-se soberano e tranquilo em meio à primavera e ao sacrifício. Mas a fúria da contagem e/ou das dificuldades de encontrar o som absoluto deixaram os músicos em estado de concentração búdica; e isso, que causou algum distanciamento no começo, fez a Osesp sair de si depois, para chegar aonde não tinha ido ainda, ou não assim.
E nem sempre pelo arroubo e pela violência. Um dos grandes momentos dessa "Sagração" foi a passagem delicadíssima dos trompetes com surdina, no início da segunda parte, respondidos pelas violas e comentados pela requinta. Música de Marte, ou de Saturno, ou do fundo da espinha.

Destaque
O herói da tarde, como esperado, foi o fagotista Fábio Cury. A "Sagração" começa com um solo de fagote, na região mais aguda do instrumento. "Por que o sr. não o deu para o corne inglês?", perguntaram a Stravinski. "Porque o fagotista tem de estar com medo. Esse é o som que eu quero." Se tivesse ouvido Cury, mudaria de idéia. Foi de uma calma até inquietante, calma com sombras, emotiva, original.
O mundo termina com um bang!, não com um suspiro. Ovação, platéia em pé, Neschling fazendo solista por solista e naipe por naipe agradecer. Palmas e mais palmas, até doerem as mãos.
Com Stravinski no cérebro, a gente até esquece do lindo "Concerto", de Dvorák (1841-1904), solado antes pelo violoncelista Mario Brunello. Injustiça. A borboleta dos dedos voou feliz pelas alturas incríveis da primeira corda. E o arco é expressivo em acordes e melancolias. Brunello toca na medida sábia de si, sem afetar genialidade, mas sem menosprezar uma musicalidade muito franca e madura.
É que o Stravinski faz de tudo terra arrasada. "I feel like taking all my clothes off/ Dancing to "The Rite of Spring"." Vontade todo mundo tem, todo mundo teve. Só não tirou por timidez.



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