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"ROMPENDO O SILÊNCIO"
Spielberg revive Holocausto padrão
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
Com quantas histórias se faz a
história? Talvez nem a soma
de todos os dramas pessoais possa dar a dimensão da tragédia coletiva dos judeus na Segunda
Guerra. Ou, visto de outra forma,
os sobreviventes do Holocausto
talvez, simplesmente, não consigam reconstituir seu passado tal
como ele foi. Essa impossibilidade
é resumida por "Rompendo o Silêncio", projeto de Steven Spielberg e de sua Survivors of the
Shoah Visual History Foundation
(fundação de história visual dos
sobreviventes do Holocausto),
que sai agora em DVD.
São cinco documentários, dirigidos por cinco diferentes diretores, todos eles com currículo premiado: o argentino Luis Puenzo,
o húngaro Janos Szasz, o russo
Pavel Chukhraj, o polonês Andrzej Wajda e o tcheco Vojtech
Jasny. Em suas mãos, os depoimentos recolhidos pela fundação
de Spielberg, em si mesmos trágicos, ganham uma perspectiva ainda mais impressionante. Mas, vistos em conjunto, os filmes indicam um certo padrão de memória
que, em lugar de revelar o passado
em toda a sua profundidade, apenas ratifica o discurso já consagrado do Holocausto.
Loucura padronizada
As lembranças mais ou menos
idênticas podem resultar de um
dos traços característicos do totalitarismo, que explorou e amplificou o esvaziamento completo do
indivíduo e sua transformação
em homem-massa, absolutamente descartável.
Os campos de extermínio nazistas foram o laboratório desse novo ambiente. Neles, os prisioneiros -cobaias do que viria a se
tornar a sociedade caso os nazistas vencessem- perdiam contato
com o que lhes havia de familiar,
isto é, objetos, pessoas e conceitos. Sem essas referências, os internados pouco a pouco abandonavam sua condição humana, integrando-se, apáticos, ao mundo
da loucura criado pelos nazistas.
Era-lhes vedado inclusive o caráter particular da morte, razão
pela qual os depoimentos raramente mencionam crimes isolados, enfatizando sempre os assassinatos em massa e as valas comuns. Assim, uma vez que tudo
nos campos de extermínio tem
esse traço "conjunto", é compreensível que haja uma certa
monotonia nos testemunhos dos
sobreviventes dos campos.
Mas não é apenas isso o que esses sobreviventes têm a dizer.
Certamente, num evento da dimensão do Holocausto, há mais
coisas a relatar do que "pilhas de
corpos" e "cheiro adocicado de
carne queimada", expressões repetidas exaustivamente pela
maioria dos entrevistados. A
questão é que esse tesouro histórico permanece enterrado sob a
memória coletiva, aquela que está
na superfície do discurso.
Os sobreviventes, a julgar por
"Rompendo o Silêncio", parecem
se agarrar a um modelo único de
depoimento que serve não só para aproximá-los uns dos outros
mas também para lhes dar uma
espécie de "conforto" sobre a terrível tragédia pela qual passaram.
Relatar acontecimentos que outros sobreviventes também relatam significa encontrar um meio
de contar uma história que, de
outra forma, poderia ser classificada de fantasiosa, inclusive pelas
próprias vítimas. Muitos deles dizem à câmera que "ninguém acreditaria" naquilo que relatam, tamanha a barbárie. Homens velhos olham para o vazio, em prolongado silêncio, procurando desesperadamente por palavras que
permitam articular a indizível
lembrança que lhes vem à mente.
Muitos simplesmente não conseguem -e choram.
Para os documentaristas, isso
basta. Eles não instam seus entrevistados a ir além, a buscar reminiscências potencialmente constrangedoras e a revelar a tragédia
inteira. Temas complicados como
o colaboracionismo judeu e a prevalência dos interesses individuais em meio à escassez dos guetos e campos, por exemplo, são
deixados de lado.
A identidade de "vítimas do
Holocausto", construída por
meio do discurso padrão, deve a
todo custo ser preservada.
"Rompendo o Silêncio" é uma
obra obrigatória, quer por sua excepcional qualidade, quer porque
causa enorme desconforto moral
-assistir aos documentários no
calor de casa, perto dos filhos bem
alimentados, é quase obsceno.
Mas a soma dos depoimentos resulta somente em parte da história. A outra parte permanece em
silêncio. Ou, como diz uma sobrevivente, "só os mortos podem falar do Holocausto".
Rompendo o Silêncio
nbsp;
Direção: Luis Puenzo, Janos Szasz, Pavel
Chukhraj, Andrzej Wajda e Vojtech Jasny
Distribuidora: Universal; R$ 45, em
média
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