São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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"ROMPENDO O SILÊNCIO"

Spielberg revive Holocausto padrão

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Com quantas histórias se faz a história? Talvez nem a soma de todos os dramas pessoais possa dar a dimensão da tragédia coletiva dos judeus na Segunda Guerra. Ou, visto de outra forma, os sobreviventes do Holocausto talvez, simplesmente, não consigam reconstituir seu passado tal como ele foi. Essa impossibilidade é resumida por "Rompendo o Silêncio", projeto de Steven Spielberg e de sua Survivors of the Shoah Visual History Foundation (fundação de história visual dos sobreviventes do Holocausto), que sai agora em DVD.
São cinco documentários, dirigidos por cinco diferentes diretores, todos eles com currículo premiado: o argentino Luis Puenzo, o húngaro Janos Szasz, o russo Pavel Chukhraj, o polonês Andrzej Wajda e o tcheco Vojtech Jasny. Em suas mãos, os depoimentos recolhidos pela fundação de Spielberg, em si mesmos trágicos, ganham uma perspectiva ainda mais impressionante. Mas, vistos em conjunto, os filmes indicam um certo padrão de memória que, em lugar de revelar o passado em toda a sua profundidade, apenas ratifica o discurso já consagrado do Holocausto.

Loucura padronizada
As lembranças mais ou menos idênticas podem resultar de um dos traços característicos do totalitarismo, que explorou e amplificou o esvaziamento completo do indivíduo e sua transformação em homem-massa, absolutamente descartável.
Os campos de extermínio nazistas foram o laboratório desse novo ambiente. Neles, os prisioneiros -cobaias do que viria a se tornar a sociedade caso os nazistas vencessem- perdiam contato com o que lhes havia de familiar, isto é, objetos, pessoas e conceitos. Sem essas referências, os internados pouco a pouco abandonavam sua condição humana, integrando-se, apáticos, ao mundo da loucura criado pelos nazistas.
Era-lhes vedado inclusive o caráter particular da morte, razão pela qual os depoimentos raramente mencionam crimes isolados, enfatizando sempre os assassinatos em massa e as valas comuns. Assim, uma vez que tudo nos campos de extermínio tem esse traço "conjunto", é compreensível que haja uma certa monotonia nos testemunhos dos sobreviventes dos campos.
Mas não é apenas isso o que esses sobreviventes têm a dizer. Certamente, num evento da dimensão do Holocausto, há mais coisas a relatar do que "pilhas de corpos" e "cheiro adocicado de carne queimada", expressões repetidas exaustivamente pela maioria dos entrevistados. A questão é que esse tesouro histórico permanece enterrado sob a memória coletiva, aquela que está na superfície do discurso.
Os sobreviventes, a julgar por "Rompendo o Silêncio", parecem se agarrar a um modelo único de depoimento que serve não só para aproximá-los uns dos outros mas também para lhes dar uma espécie de "conforto" sobre a terrível tragédia pela qual passaram.
Relatar acontecimentos que outros sobreviventes também relatam significa encontrar um meio de contar uma história que, de outra forma, poderia ser classificada de fantasiosa, inclusive pelas próprias vítimas. Muitos deles dizem à câmera que "ninguém acreditaria" naquilo que relatam, tamanha a barbárie. Homens velhos olham para o vazio, em prolongado silêncio, procurando desesperadamente por palavras que permitam articular a indizível lembrança que lhes vem à mente. Muitos simplesmente não conseguem -e choram.
Para os documentaristas, isso basta. Eles não instam seus entrevistados a ir além, a buscar reminiscências potencialmente constrangedoras e a revelar a tragédia inteira. Temas complicados como o colaboracionismo judeu e a prevalência dos interesses individuais em meio à escassez dos guetos e campos, por exemplo, são deixados de lado.
A identidade de "vítimas do Holocausto", construída por meio do discurso padrão, deve a todo custo ser preservada.
"Rompendo o Silêncio" é uma obra obrigatória, quer por sua excepcional qualidade, quer porque causa enorme desconforto moral -assistir aos documentários no calor de casa, perto dos filhos bem alimentados, é quase obsceno. Mas a soma dos depoimentos resulta somente em parte da história. A outra parte permanece em silêncio. Ou, como diz uma sobrevivente, "só os mortos podem falar do Holocausto".


Rompendo o Silêncio
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Direção: Luis Puenzo, Janos Szasz, Pavel Chukhraj, Andrzej Wajda e Vojtech Jasny
Distribuidora: Universal; R$ 45, em média



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