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CARLOS HEITOR CONY
"Sou do clube tantas vezes campeão"
O menino gostava de algumas coisas, de outras não.
Por exemplo: quando perguntavam o que ele queria ser, ele não
queria ser nada. Na realidade,
nem queria crescer. Sendo, ou fingindo-se de mudo, não dava resposta. Até que lhe perguntaram
de repente: ""Qual é o seu time?"
Inesperadamente até para ele,
respondeu na bucha: ""Sou Fluminense!" (Certamente com ponto
de exclamação e tudo).
Está traçado mais do que um
destino, mas um estigma. Como
não ser tricolor? O menino tinha
oito a dez anos, o Fluminense era
tricampeão carioca e, com o intervalo de um ano apenas, quando deu a base para a seleção nacional que disputaria a Taça Jules
Rimet, na França, seria bicampeão. Em 39, devido à Copa do
Mundo, interromperia a série
triunfal.
Basta consultar os centros de
memória de hoje, a coleção dos
jornais de ontem e o coração dos
seus torcedores de sempre. Sim, o
Fluminense foi tricampeão em 36,
37 e 38, perdeu em 39 e seria bicampeão em 40 e 41. Por pouco seria hexacampeão -título que nenhum outro clube possuiu e que
talvez o Brasil, como seleção, consiga.
Um garoto daquele tempo não
teria opção. Sabia o time de cor,
um dos melhores de todos os tempos do futebol nacional: Batatais,
Moisés e Machado; Santamaria,
Brant e Orozimbo; Sobral, Romeu, Russo, Tim e Hércules.
Antes, o Fluminense já havia sido tricampeão logo no início, antes de ter dado aquele fruto bastardo que seria o Flamengo. Repetiu a dose em 17, 18 e 19, com
um time também antológico, com
Marcos Carneiro de Mendonça
no gol, Coelho Neto na arquibancada e um filho em campo.
Ele nem era nascido, mas era
como se fosse. Seu DNA estava em
gestação, anos depois se concretizaria no menino calado que antecipava o adulto falastrão.
Evidente que nem tudo foram
flores. Vieram os abrolhos, as
amargas da vida e da circunstância, tempos de cabeça baixa, mais
baixa do que inchada, mas sempre aparecia um clarão, uma estrela rasgando a tenebrosa noite
das frases adversas.
O menino cresceu e, homem feito, teve uma recaída brutal no seu
ufanismo tricolor. Foi há mais de
meio século, é verdade, mas para
ele é como se fosse amanhã. Ao
contrário do famoso time do quase hexacampeonato, entravam
em campo alguns craques avulsos
-avulsos, mas enormes, como
Didi, Pinheiro e Castilho-, mas
a maioria era de jogadores medianos, até mesmo alguns que
mereciam a abominável categoria dos pernas-de-pau.
Ninguém se convencia, naquele
ano, de que o Fluminense valesse
alguma coisa. No turno e no returno, o time jogava sempre numa aparente defensiva, deixando
o campo e a bola para o adversário. Após cada vitória, que parecia suada, de 1 x 0 ou de 2 x 1 nos
jogos mais fáceis, os entendidos,
os formadores de opinião, povo,
nobreza e clero zombavam do
Fluminense, devia ter perdido e
perdido de goleada, fora salvo pelas traves ou pela leiteria do Castilho, uma leiteria sobrenatural
que alimentava o time e o torcedor.
Era a marcação por zona que
Zezé Moreira introduzira em nosso futebol, substituindo a diagonal de Flávio Costa, que adaptara
o WM dos ingleses às necessidades pátrias. Era assombroso ver o
time não disputar a bola, deixar o
adversário atacar, recuar todo
mundo e mesmo assim vencer. O
Fluminense não disputava a bola,
disputava o espaço, a zona. E foi
campeão em 51, com a mesma tática. Dirigido por Zezé Moreira e
com o Fluminense quase todo na
seleção, o Brasil seria campeão
pan-americano no Chile, em
1952, trazendo pela primeira vez
um título internacional para nós.
O menino ressuscitou dentro do
adulto, foi a todos os jogos, ao alçapão de Bariri, território minado do Olaria, a Conselheiro Galvão -nunca tinha ido a Madureira, mas fez questão de ir lá, ver
Didi jogando contra o clube no
qual estreara no futebol carioca.
Exagerado, foi até Canto do
Rio, que tinha um campo esquisito em Niterói, nem era carioca da
gema ou da clara, era niteroiense
mesmo, não valia o sacrifício ir ao
Caio Martins, precisava pegar
barca -mas ele ia, como o peregrino vai ao templo, cumprindo
um ritual e sacudindo o pó das
sandálias, embora nas barcas da
Cantareira não houvesse pó, mas
perigo de naufrágio.
Nos torneios Rio-São Paulo, pegava o carro, enfrentava a antiga
Dutra esburacada e fatal, pegava
uma geral do Pacaembu e voltava, à noite, na mesma e esburacada via Dutra.
Torcer pelo Fluminense era desdobrar fibra por fibra o coração.
Mas valia a pena.
O futebol mudou, no conteúdo e
na forma, adotou a substituição
dos titulares quando se machucam ou jogam errado. Ele lembra
o jogo em que Castilho machucou
a mão e foi jogar na ponta-esquerda. Carlyle foi para o gol.
A torcida também mudou, ficou
presa à TV -ele também. Não
era mais o menino e talvez nem
fosse mais um adulto. Se bobeasse, dia desses poderia chegar aos
cem anos, como o seu time chega
agora, coberto de tradição e glória, mesmo quando não vence.
Que importa? Tricolor de coração, é do clube tantas vezes campeão.
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