São Paulo, quarta-feira, 26 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Ainda o sangue da Espanha

Demonizar um dos lados pela celebração heróica do outro não me parece um ato de seriedade, sr. embaixador

DIZEM QUE a verdade é a primeira vítima de qualquer guerra. Concordo. Sobretudo quando a história dessa guerra acaba sendo escrita pelos perdedores. É o caso da Guerra Civil Espanhola: durante 70 anos, a historiografia "oficial" foi popularizando uma versão que apresentava a tragédia de 1936-39 como uma luta muito simples, e às vezes muito bela, entre os "bons" (os republicanos) e os "maus" (os nacionalistas). Na passada semana, tentei afirmar que a visão é infantil e, além disso, reduzir a luta a "bons" e "maus" é iludir a verdade mais dolorosa: em 1936, a alternativa não era entre "democracia" ou "fascismo", mas entre uma ditadura stalinista ou uma ditadura reacionária e clerical. Pena que não tenham perdido as duas.
Infelizmente, o embaixador da Espanha discorda. E ontem, em artigo nesta Folha, acusa-me de ser "superficial" e "inexato". Devo, primeiro que tudo, fazer uma observação: o sr. embaixador acerta ao atribuir a Filipe 2º a mudança da corte para Madri. Mas, se me permitem, eu não afirmei que a mudança se deveu a Carlos 5º. Apenas disse, e repito, que foi Carlos 5º o primeiro a elevar uma inóspita terra do interior de Espanha a cidade de alguma proeminência. Só.
Mas mais interessantes são as questões sobre a Guerra Civil. O sr. embaixador cita Antony Beevor e Stanley Payne com certa displicência, apesar de serem reputados historiadores internacionais. Mas o que existe em Beevor ou Payne (ou em historiadores espanhóis como Ricardo de la Cierva) é a recusa de cair em maniqueísmo simplório.
Sim, a Segunda República foi derrubada por Franco e a ditadura que se seguiu foi imperdoável. Mas a violência dos "rojos", antes e depois de 1936, precipitou essa intolerável ditadura. Aliás, o sr. embaixador sabe perfeitamente que a guerra não começou em 1936; começou dois anos antes, quando uma revolta armada das esquerdas (PSOE, nacionalistas catalães, comunistas, anarquistas das Astúrias) procurou liquidar o governo democraticamente eleito de centro-direita. A insurreição fracassou, é certo. Mas o demônio de 1936 já andava à solta em 1934.
Sim, as potências fascistas apoiaram os "nacionales"; mas Moscou fez o mesmo com os "rojos" e não creio, como assegura o sr. embaixador, que seja "inaceitável" afirmar que, em caso de vitória da esquerda, a Espanha teria sido um satélite de Stálin. Basta ouvir os próprios líderes da esquerda (como Largo Caballero) ou então ler órgãos de propaganda (como o "El Socialista") que afirmavam que o modelo a seguir era a Rússia de 1917. As atitudes de violência revolucionária, antes e depois de 1936, deixaram poucas dúvidas.
Demonizar um dos lados pela celebração heróica do outro não me parece um ato de seriedade. Sim, García Lorca foi barbaramente assassinado. Mas não acha estranho, sr. embaixador, que poucos se lembrem da morte de Ramiro de Maeztu? Num ponto, porém, concordo com o embaixador: o excesso de calor pode prejudicar o bom senso. Felizmente, não foi o caso.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: MAM recebe nova coleção de arte brasileira
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.