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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Ainda o sangue da Espanha
Demonizar um dos lados pela celebração heróica do outro não me parece um ato de seriedade, sr. embaixador
DIZEM QUE a verdade é a primeira vítima de qualquer
guerra. Concordo. Sobretudo quando a história dessa guerra
acaba sendo escrita pelos perdedores. É o caso da Guerra Civil Espanhola: durante 70 anos, a historiografia "oficial" foi popularizando
uma versão que apresentava a tragédia de 1936-39 como uma luta muito
simples, e às vezes muito bela, entre
os "bons" (os republicanos) e os
"maus" (os nacionalistas). Na passada semana, tentei afirmar que a visão é infantil e, além disso, reduzir a
luta a "bons" e "maus" é iludir a verdade mais dolorosa: em 1936, a alternativa não era entre "democracia" ou "fascismo", mas entre uma
ditadura stalinista ou uma ditadura
reacionária e clerical. Pena que não
tenham perdido as duas.
Infelizmente, o embaixador da
Espanha discorda. E ontem, em artigo nesta Folha, acusa-me de ser
"superficial" e "inexato". Devo, primeiro que tudo, fazer uma observação: o sr. embaixador acerta ao
atribuir a Filipe 2º a mudança da
corte para Madri. Mas, se me permitem, eu não afirmei que a mudança se deveu a Carlos 5º. Apenas
disse, e repito, que foi Carlos 5º o
primeiro a elevar uma inóspita terra do interior de Espanha a cidade
de alguma proeminência. Só.
Mas mais interessantes são as
questões sobre a Guerra Civil. O sr.
embaixador cita Antony Beevor e
Stanley Payne com certa displicência, apesar de serem reputados historiadores internacionais. Mas o
que existe em Beevor ou Payne (ou
em historiadores espanhóis como
Ricardo de la Cierva) é a recusa de
cair em maniqueísmo simplório.
Sim, a Segunda República foi
derrubada por Franco e a ditadura
que se seguiu foi imperdoável. Mas
a violência dos "rojos", antes e depois de 1936, precipitou essa intolerável ditadura. Aliás, o sr. embaixador sabe perfeitamente que a
guerra não começou em 1936; começou dois anos antes, quando
uma revolta armada das esquerdas
(PSOE, nacionalistas catalães, comunistas, anarquistas das Astúrias) procurou liquidar o governo
democraticamente eleito de centro-direita. A insurreição fracassou, é certo. Mas o demônio de
1936 já andava à solta em 1934.
Sim, as potências fascistas apoiaram os "nacionales"; mas Moscou
fez o mesmo com os "rojos" e não
creio, como assegura o sr. embaixador, que seja "inaceitável" afirmar
que, em caso de vitória da esquerda, a Espanha teria sido um satélite
de Stálin. Basta ouvir os próprios
líderes da esquerda (como Largo
Caballero) ou então ler órgãos de
propaganda (como o "El Socialista") que afirmavam que o modelo a
seguir era a Rússia de 1917. As atitudes de violência revolucionária,
antes e depois de 1936, deixaram
poucas dúvidas.
Demonizar um dos lados pela celebração heróica do outro não me
parece um ato de seriedade. Sim,
García Lorca foi barbaramente assassinado. Mas não acha estranho,
sr. embaixador, que poucos se lembrem da morte de Ramiro de
Maeztu? Num ponto, porém, concordo com o embaixador: o excesso
de calor pode prejudicar o bom
senso. Felizmente, não foi o caso.
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