São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

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FERREIRA GULLAR

Errar é comigo mesmo


Errar faz parte da descoberta e do acerto, se não for de propósito ou por negligência

NINGUÉM PODE dizer que eu não avisei. Na primeira crônica, aqui publicada no dia 2 de janeiro de 2005, afirmei, em alto e bom som, que esqueço tudo o que leio e tendo a inventar de minha cabeça o que os romances não contam e os ensaios não dizem. Que crédito pode merecer um sujeito tão desligado que chega a mijar na lata de lixo pensando que é o vaso sanitário? Era inevitável acontecer o que tem acontecido: cartas e cartas de leitores apontando os erros que cometo, informações erradas, dados equivocados. São tantos que já nem consigo lembrar, e não os lembraria ainda que fossem poucos, porque lembrar não é o meu forte.
Mas isso não é desculpa, a internet está aí mesmo para oferecer as informações que nos faltam. É verdade que também esses dados nem sempre são exatos, porque deve ter sido lá que colhi a informação de que a estrela mais próxima da Terra (fora o Sol) estaria a 25 anos-luz, quando está a apenas 4 anos-luz e pouco. E tem sempre aquele leitor chatinho que aproveita para nos dar um puxão de orelha. A minha, aliás, já está ardendo.
Diga-se a meu favor que, neste caso, as distâncias são tão grandes que tanto faz 25 como 4, uma vez que, de qualquer jeito, não chegaríamos a ela, porque, se meus cálculos estão corretos (estarão?), uma nave que voe a 9.000 quilômetros por hora levaria 4.000 anos para cobrir aquela distância; e, se voe a 90 mil, levaria quatro séculos. Ou seja, uma aventura inviável.
Mas, além dos erros cósmicos, cometo erros terrestres, terra a terra mesmo, como na crônica sobre o Bolsa Família, em que falei de casais que passaram a dobrar a filharada para aumentar a renda familiar. É certo que há na lei exigências que limitam certas espertezas, mas seria ingênuo crer que não são burladas. Modéstia à parte, eu também às vezes escrevo certo por linhas tortas e, neste caso, o que menos importa são as exigências legais, dificilmente obedecidas, num programa social que envolve 40 milhões de pessoas. Se no Congresso, que, pelo que sei, não foi criado para dar dinheiro a famílias carentes, os recursos públicos são distribuídos à tripa forra, imagine você o que não ocorre no Bolsa Família, que já foi criado para dar grana a quem não trabalha!
Esse, porém, é apenas um dos aspectos da questão: o que importa é entender que programas dessa natureza só podem ser mantidos em caráter emergencial, para atender a situações críticas, já que a verdadeira solução é inserir o cidadão no mercado de trabalho. Não se pode transformar tais programas em assistencialismo permanente, com propósitos eleitoreiros e demagógicos. Foi isso que, com dados tortos, procurei demonstrar, donde a conclusão de que o Brasil precisa urgentemente de um estadista; isto é, de alguém que ponha o interesse público acima das ambições pessoais.
Como dizia no começo desta crônica, errar é comigo mesmo. Sucede, no entanto, que, para mim, errar faz parte da descoberta e do acerto, desde que não se erre de propósito ou por negligência. Às vezes, partimos de premissas corretas e, no caminho, nos extraviamos.
Já contei, faz muitos anos, o caso de uma estante que mandei fazer, ao me mudar para um apartamento novo, na Visconde de Pirajá, em Ipanema. Pela primeira vez ia ter um escritório, onde escrever em silêncio, à sombra da estante, que faltava. Por isso a encomendei a um marceneiro português, seu Joaquim, que tinha oficina na Barão da Torre. Tudo acertado, ele me pediu o endereço de onde entregar a estante, que ficaria pronta em dez dias.
Só então me dei conta de que não o sabia, mas raciocinei: se o número do edifício onde mora Mário Pedrosa, que fica em frente, é número 228, o meu deve ser 227. "Meu endereço é Visconde de Pirajá, 227, apartamento 302", disse eu, e seu Joaquim o anotou.
Dez dias depois, ao voltar do jornal, constatei que a estante não tinha chegado e, àquela hora, oito da noite, a marcenaria já estava fechada. Na manhã seguinte, cedo fui tomar satisfações com seu Joaquim, que, ao me ver, foi logo falando: "Que diabo de endereço o senhor me deu, que os homens andaram com estante pra cima e pra baixo, sem achar o tal número?".
Tinha errado na dedução. Se não era 227, que número seria?
"Qual é afinal esse maldito número?". Hesitei, mas respondi: "Desculpe, me enganei, é 217". O número certo era 127. Tive que voltar à marcenaria para, às gargalhadas, fazer a correção. Seu Joaquim, porém, não achou a menor graça nas minhas trapalhadas.


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