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FERNANDO GABEIRA
Não se faz Hemingway como antigamente
Vão fazer muito barulho com os
100 anos de Hemingway. Sempre
o admirei como escritor. Começou
como jornalista. Há alguns anos,
ainda no exílio, comprei um livro
que reunia seus principais telegramas para a imprensa.
A busca da concisão já estava
presente nos textos mais prosaicos
de jovem correspondente na Europa.
Os 100 anos de Hemingway me
colhem num momento especial.
Termino a leitura de "Um Homem por Inteiro", de Tom Wolfe.
É um escritor que também veio
do jornalismo.
Talvez já tenha vivido um momento do jornalismo em que não
se acreditava mais no chamado
mito da objetividade. Momento
de cansaço com as fórmulas que
dominaram, por tanto tempo, a
estrutura de nossos textos profissionais.
Comparar Wolfe com Hemingway não significa um desejo de
que um escreva como outro. Isso
não seria comparação, mas tentativa de assassinato. Faulkner,
Saroyan, Kerouac e tantos outros,
cada um escreve de seu jeito, e tudo bem.
Ninguém precisa escrever como
Hemingway, coisa que, às vezes, a
gente não entendia ou não tinha
coragem de entender quando éramos garotos e fazíamos jornalismo.
Hemingway não descrevia muito, não se perdia em longas digressões. Havia ação, frases curtas, diálogos trabalhados e tudo
fluía com muita desenvoltura. Os
personagens de Tom Wolfe parecem produzidos num laboratório
de pesquisa e despejam informações em cada gota de suor, cada
tropeção numa pedra de rua.
Um advogado negro está visitando um bairro rico de Atlanta;
olha para o chão e vê paralelepípedos belgas, algo improvável
num texto de Hemingway.
O cara iria olhar para baixo e
pensar alguma coisa que lhe viesse à cabeça, raramente ia despejar informações enciclopédicas no
leitor, como se dissesse: olhe, aqui
as coisas estão rolando, você está
se divertindo, mas livro também é
cultura, nosso departamento de
pesquisa está cuidando para que
você saia menos ignorante do que
entrou ao abrir a primeira página.
Essa mesma tendência se revela
nos diálogos de Wolfe. Um homem vai narrar o estupro de sua
filha e se comporta como um verdadeiro narrador, criando suspense, pontuando com observações sociológicas sobre o pensamento liberal etc.
Poxa, não é assim que as coisas
acontecem, embora todo escritor
seja livre para descrever as coisas
do jeito que acha que as coisas devam acontecer.
Um crítico diria, nesse caso, que
os personagens não existem, são
apenas uma espécie de porta-voz
do escritor.
Claro que Wolfe não queria isso, pois seus roceiros falam como
roceiros, os presidiários negros falam sua própria linguagem etc.
Talvez o problema não seja,
exatamente, o falar de modo adequado para o personagem. Isso
também se consegue por meio de
uma boa pesquisa.
O essencial é saber o que determinado personagem falaria naquele instante, a partir de sua lógica interna. Para que isso aconteça, é preciso que tenha alguma
vida.
Nesses 100 anos de Hemingway,
fico pensando na absurda hipótese de "O Velho e o Mar" ser reescrito no estilo de Wolfe.
Creio que tomaríamos um porre de informações sobre correntes
marinhas e equipamentos de barco e pesca.
Quando o velho Santiago chegasse à praia, já não nos interessaria mais se era o peixe ou o esqueleto do peixe que tinha sobrado de toda aquela aventura.
Da maneira como se detém em
Atlanta e toda sua história empresarial, Wolfe quer criar um romance americano, esses grandes
panoramas que talvez queiram
mais revelar a alma de um país
do que as nuances de seus personagens.
Nesse sentido, melhor seria retirá-lo da proximidade de Hemingway e alinhá-lo com John dos
Passos, que também queria mostrar um quadro mais amplo dos
Estados Unidos.
Só que, para isso, Dos Passos
criou uma técnica de carretel, cinematográfica, que acabou sendo
a inspiração para Sartre escrever
sua trilogia "Caminhos da Liberdade".
De qualquer maneira, nos 100
anos de Hemingway é importante
registrar que a ficção norte-americana, que ganhou uma grande
visibilidade internacional com
ele, continua dominando a cena
planetária.
Se os autores conhecidos agora
são mais autores de best sellers, isto não pode ser imputado à literatura. Tudo mudou de lá para cá,
os leitores inclusive.
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