São Paulo, Segunda-feira, 26 de Julho de 1999
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FERNANDO GABEIRA
Não se faz Hemingway como antigamente

Vão fazer muito barulho com os 100 anos de Hemingway. Sempre o admirei como escritor. Começou como jornalista. Há alguns anos, ainda no exílio, comprei um livro que reunia seus principais telegramas para a imprensa.
A busca da concisão já estava presente nos textos mais prosaicos de jovem correspondente na Europa.
Os 100 anos de Hemingway me colhem num momento especial. Termino a leitura de "Um Homem por Inteiro", de Tom Wolfe. É um escritor que também veio do jornalismo.
Talvez já tenha vivido um momento do jornalismo em que não se acreditava mais no chamado mito da objetividade. Momento de cansaço com as fórmulas que dominaram, por tanto tempo, a estrutura de nossos textos profissionais.
Comparar Wolfe com Hemingway não significa um desejo de que um escreva como outro. Isso não seria comparação, mas tentativa de assassinato. Faulkner, Saroyan, Kerouac e tantos outros, cada um escreve de seu jeito, e tudo bem.
Ninguém precisa escrever como Hemingway, coisa que, às vezes, a gente não entendia ou não tinha coragem de entender quando éramos garotos e fazíamos jornalismo.
Hemingway não descrevia muito, não se perdia em longas digressões. Havia ação, frases curtas, diálogos trabalhados e tudo fluía com muita desenvoltura. Os personagens de Tom Wolfe parecem produzidos num laboratório de pesquisa e despejam informações em cada gota de suor, cada tropeção numa pedra de rua.
Um advogado negro está visitando um bairro rico de Atlanta; olha para o chão e vê paralelepípedos belgas, algo improvável num texto de Hemingway.
O cara iria olhar para baixo e pensar alguma coisa que lhe viesse à cabeça, raramente ia despejar informações enciclopédicas no leitor, como se dissesse: olhe, aqui as coisas estão rolando, você está se divertindo, mas livro também é cultura, nosso departamento de pesquisa está cuidando para que você saia menos ignorante do que entrou ao abrir a primeira página.
Essa mesma tendência se revela nos diálogos de Wolfe. Um homem vai narrar o estupro de sua filha e se comporta como um verdadeiro narrador, criando suspense, pontuando com observações sociológicas sobre o pensamento liberal etc.
Poxa, não é assim que as coisas acontecem, embora todo escritor seja livre para descrever as coisas do jeito que acha que as coisas devam acontecer.
Um crítico diria, nesse caso, que os personagens não existem, são apenas uma espécie de porta-voz do escritor.
Claro que Wolfe não queria isso, pois seus roceiros falam como roceiros, os presidiários negros falam sua própria linguagem etc.
Talvez o problema não seja, exatamente, o falar de modo adequado para o personagem. Isso também se consegue por meio de uma boa pesquisa.
O essencial é saber o que determinado personagem falaria naquele instante, a partir de sua lógica interna. Para que isso aconteça, é preciso que tenha alguma vida.
Nesses 100 anos de Hemingway, fico pensando na absurda hipótese de "O Velho e o Mar" ser reescrito no estilo de Wolfe.
Creio que tomaríamos um porre de informações sobre correntes marinhas e equipamentos de barco e pesca.
Quando o velho Santiago chegasse à praia, já não nos interessaria mais se era o peixe ou o esqueleto do peixe que tinha sobrado de toda aquela aventura.
Da maneira como se detém em Atlanta e toda sua história empresarial, Wolfe quer criar um romance americano, esses grandes panoramas que talvez queiram mais revelar a alma de um país do que as nuances de seus personagens.
Nesse sentido, melhor seria retirá-lo da proximidade de Hemingway e alinhá-lo com John dos Passos, que também queria mostrar um quadro mais amplo dos Estados Unidos.
Só que, para isso, Dos Passos criou uma técnica de carretel, cinematográfica, que acabou sendo a inspiração para Sartre escrever sua trilogia "Caminhos da Liberdade".
De qualquer maneira, nos 100 anos de Hemingway é importante registrar que a ficção norte-americana, que ganhou uma grande visibilidade internacional com ele, continua dominando a cena planetária.
Se os autores conhecidos agora são mais autores de best sellers, isto não pode ser imputado à literatura. Tudo mudou de lá para cá, os leitores inclusive.


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