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CONTARDO CALLIGARIS
Quem tem medo dos moradores de rua?
Na madrugada de quinta-feira passada, no centro de
São Paulo, dez moradores de rua
foram atacados a cacetadas na
cabeça durante o sono. Até hoje
(terça-feira, quando fecho esta
coluna), quatro morreram.
No domingo, novo ataque, do
mesmo jeito e no mesmo lugar:
morreram mais dois.
Fala-se dos mortos e dos que estão por um fio, mas não se fala
das seqüelas para os feridos. Se
eles têm pinos que não batem direito, paulada a mais, paulada a
menos, qual a diferença? Quando
reconheceremos que os loucos e os
perdidos são sujeitos como nós?
Levantam-se hipóteses: foi a
obra de sicários a mando de comerciantes querendo "limpar" a
área? Ou um acerto de contas do
tráfico de drogas?
Mas a imagem que me persegue
é outra: um pequeno bando de assassinos, na madrugada, percorrendo o centro da cidade, enfurecidos e jocosos como personagens
de "Laranja Mecânica", de barra
na mão. No meu pesadelo, por escárnio, a primeira matança começou onde nasceu a cidade; vejo
eles descerem pela rua São Bento
e pela 15 de Novembro, levarem a
morte para a praça da Sé e para a
praça João Mendes, assassinarem
com gosto o travesti Pantera, na
esquina com a Tabatingüera. E
vão embora pela rua da Glória.
No domingo, os mesmos ou outros voltaram para completar a
obra. De onde veio o ódio necessário para erguer o bordão?
Não penso tanto no massacre
da Candelária, que foi a tiros,
quase profissional. Penso no índio
Galdino, queimado vivo em Brasília em 1997, e na morte de Edson
Neri da Silva, em 2000, logo na
praça da República.
O assassinato de Galdino foi
uma diversão para filhos de donos do poder. Colocaram fogo
num índio como amarrariam
uma serpentina ao rabo de um vira-lata: vamos ver se o animal
grita e pula quando a coisa esquenta. O "passatempo" desses
adolescentes mimados é diferente
do ofício metódico dos assassinos
de hoje.
Mas a história de Edson Neri da
Silva pode ajudar a entender o
que aconteceu na semana que
acaba. Você lembra? Foi a obra
de "skinheads" decididos a acabar com "uma bicha". Os massacres de homossexuais sempre falam da homossexualidade reprimida de quem mata. Sem exceção, os assassinos tentam abolir
uma fantasia sua. Batendo no
"veado" na rua, querem acabar
com o "veado" que não os deixa
dormir, o "veado" que está dentro
deles.
É o mesmo ódio que anima os
idiotas que passam de carro ao lado do Jockey Clube, à noite, para
zombar dos travestis. Gritam injúrias para silenciar sua própria
incerteza de gênero e sexo.
Ora, aposto que os assassinos
desta semana são tão próximos
dos moradores de rua quanto
eram próximos de suas vítimas os
"skinheads" da praça da República em 2000. Aposto que são sujeitos de uma pequena classe média
que a falta de perspectivas ameaça com o espectro da miséria.
Aposto que sua fúria homicida é a
vontade de apagar a imagem de
seu próprio futuro possível. Mataram moradores de rua para "festejar" sua diferença, da mesma
forma que os "skinheads" de 2000
quiseram silenciar um desejo que
os assombrava.
Na Folha de domingo, Gilberto
Dimenstein citou dados recentes
da Fundação Seade: em São Paulo, desde 1995, o desemprego entre
jovens de 18 a 24 anos subiu de
18% a 30%. Gilberto comentava
que tamanho desemprego é um
dos "combustíveis da delinqüência". Esse combustível não leva só
a assaltar quem tem mais; ele
também leva a massacrar quem
não tem nada, para esmagar a
imagem de um destino que espreita.
O que fazer? Além de prender e
punir, podemos inventar uma sociedade em que ninguém esteja a
fim de matar a cacetadas o futuro
que ele receia. E podemos lembrar
que, nessa sociedade, alguém pode perder casa, renda, endereço,
identidade e até o nome, mas
nem por isso será esquecido, nem
por isso parará de ser dos nossos.
Na São Paulo de meus sonhos,
depois dos acontecimentos da semana passada, teria acontecido o
seguinte. Espontaneamente, na
noite de segunda-feira, os edifícios e as casas dos Jardins, de Perdizes, da Mooca, do Tatuapé, da
Lapa, da Vila Mariana, do Sumaré, do Itaim etc. iriam se esvaziando. Um a um ou em família,
os paulistanos sairiam às ruas,
com um saco de dormir embaixo
do braço, uma lanterna e uma
garrafa térmica. E tomariam o
caminho do centro. Nas praças e
nas ruas por onde passaram os
assassinos, eles se espalhariam,
para passar a noite. A maioria
não dormiria. Conversaríamos
com o vizinho do momento ou ficaríamos acordados por medo
dos ratos e das baratas que circulam nas sarjetas. Tanto faz. Seria
um jeito de afirmar que a cidade
é nossa, não da morte, e que, como qualquer cidade, temos nossos loucos e nossos perdidos: eles
abandonaram a corrida, mas
continuam parte de nossa comunidade.
Segunda à noite, centenas de representantes de entidades religiosas e de direitos humanos organizaram uma vigília pelas ruas do
centro. O evento não ganhou as
primeiras páginas, mas foi, até
agora, a melhor resposta aos assassinatos.
Sejamos realistas, peçamos o
impossível. Que tal decretar um
dia em memória dos mortos desta
semana e instituir uma tradição
pela qual, a cada ano, passaríamos uma noite ao relento, ao lado
de nossos moradores de rua?
ccalligari@uol.com.br
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