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FERNANDO GABEIRA
A impossibilidade de esquecer a política
Concordo com Bush, quem diria?, quando diz que os corruptos são assassinos de sonhos
GOSTARIA DE ter discutido sobre memória com Christopher Hitckens. Ele escreveu
que entender e gostar de Proust fica
mais fácil quando se tem mais de 45
anos. Depois dessa idade, é possível
integrar as perdas, sorver com delicadeza e prazer o tempo que corre.
De vez em quando, sinto-me tentado a mexer com memórias. Minha
referência é Pedro Nava, de quem
gosto muito. Seu irmão José, também médico da PM, esse bebia conosco no bar Sagarana.
Quando leio o poema, perguntando em que bramas e que brumas Pedro Nava se afundou, lembro-me
também de José, um homem culto e
com senso de humor.
Pedro Nava dividia Juiz de Fora, a
partir da rua principal, em dois lados. Do direito, as instituições e os
abastados; do lado esquerdo, uma cidade mais alegre e revolucionária.
Para Nava, o lado próspero, se pudesse amordaçar a vida e suprimir o
sexo, não ficaria satisfeito e, como
diz Rui Barbosa, trataria de forrar de
lã o espaço e caiar a natureza de ocre.
Juros bancários e casamentos consangüíneos de um lado, de outro,
alegria e sensualidade.
Certamente, as coisas são mais
misturadas, e tentarei mostrar um
dia. Mas Proust e Nava para mim são
um luxo. Minha cabeça está colonizada pelo presente.
Não tenho energia para recordar,
num momento em que todos os sentidos estão aguçados para a luta, inimigos espreitam nos cantos, as manobras mais sórdidas são tecidas nos
gabinetes.
No entanto, sinto-me no meio de
uma grande onda, que transcende os
modestos limites do Parlamento.
Há uma demanda internacional por
planos eficazes de combate à corrupção. Concordo com Bush, quem
diria?, quando afirma que os corruptos na política são assassinos de sonhos.
Nossa concordância pára aí, pois
os salvadores do mundo, também,
com perspectivas utópicas, podem
não apenas assassinar sonhos mas
crianças e civis inocentes.
A decisão do Banco Mundial de recusar financiamento a países que
não tenham planos consistentes de
combate à corrupção é um dado novo. Lembra um pouco o que aconteceu no meio ambiente.
Com o planeta ameaçado, os orgãos de financiamento passaram a
incorporar a variável ambiental em
seus empréstimos.
A esquerda clássica nos acusa de
moralistas, representantes de uma
corrente que deveria ter morrido
com a velha UDN.
Assim como a ecologia, a luta contra a corrupção será uma grande onda. Quem a conduzir tem de compreender a grandeza do tema e considerá-la superior aos partidos, objeto digno de um acordo nacional.
Suponhamos que perdemos R$ 10
bilhões por ano com corrupção. Claro que não conseguiremos zerar o
prejuízo. Vamos, apenas, atenuar o
problema. Ainda por cima, teremos
de gastar dinheiro com o controle,
que tem de ser muito mais extenso e
sofisticado. Os 1.800 fiscais da CGU
têm, teoricamente, a tarefa de monitorar 161 mil convênios.
Nesse simples abismo de números, podemos constatar que nossos
mecanismos de controle abarcam
10% do problema.
Com todas as dificuldades, vale a
pena investir. A esquerda pode relutar, com o argumento clássico de
que o capitalismo gera corrupção.
Empurrar o capitalismo para a
frente é a única forma de demonstrar que ele não é um fato da natureza. Teses que se baseiam na pobreza
do socialismo real estão fadadas ao
fracasso, penso eu.
O artigo de Jurgen Habermas, publicado no Brasil, deveria ser um
bom tema de debate dos intelectuais
que afirmam o esquecimento da política. O remanescente do grupo de
Frankfurt afirma o contrário: de
uma certa forma, são os intelectuais
que estão sendo esquecidos, superados pelas novas formas de comunicação.
O que parece uma chatice moralista, a luta contra a corrupção, pode
ser um elemento chave para mobilizar e despertar num país a vontade
de competir no mundo globalizado.
No princípio, os ecologistas eram
uns chatos, falando de viadinhos e
baleias.
Mas nada como um aquecimento
na nuca para o planeta perceber que
alguma coisa vai mal.
Com a corrupção, talvez seja preciso um cheiro de fumaça para
apressar as coisas: a estrutura política apodrecida tornou-se um obstáculo para o país.
Hoje, somos forçados a estudar a
história para resolver os problemas
do presente. Quem sabe, num futuro próximo, poderei voltar a Pedro
Nava, apenas para fruir essa delicada relação com o tempo.
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