São Paulo, sábado, 26 de agosto de 2006

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FERNANDO GABEIRA

A impossibilidade de esquecer a política

Concordo com Bush, quem diria?, quando diz que os corruptos são assassinos de sonhos

GOSTARIA DE ter discutido sobre memória com Christopher Hitckens. Ele escreveu que entender e gostar de Proust fica mais fácil quando se tem mais de 45 anos. Depois dessa idade, é possível integrar as perdas, sorver com delicadeza e prazer o tempo que corre.
De vez em quando, sinto-me tentado a mexer com memórias. Minha referência é Pedro Nava, de quem gosto muito. Seu irmão José, também médico da PM, esse bebia conosco no bar Sagarana.
Quando leio o poema, perguntando em que bramas e que brumas Pedro Nava se afundou, lembro-me também de José, um homem culto e com senso de humor.
Pedro Nava dividia Juiz de Fora, a partir da rua principal, em dois lados. Do direito, as instituições e os abastados; do lado esquerdo, uma cidade mais alegre e revolucionária.
Para Nava, o lado próspero, se pudesse amordaçar a vida e suprimir o sexo, não ficaria satisfeito e, como diz Rui Barbosa, trataria de forrar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre. Juros bancários e casamentos consangüíneos de um lado, de outro, alegria e sensualidade.
Certamente, as coisas são mais misturadas, e tentarei mostrar um dia. Mas Proust e Nava para mim são um luxo. Minha cabeça está colonizada pelo presente.
Não tenho energia para recordar, num momento em que todos os sentidos estão aguçados para a luta, inimigos espreitam nos cantos, as manobras mais sórdidas são tecidas nos gabinetes.
No entanto, sinto-me no meio de uma grande onda, que transcende os modestos limites do Parlamento. Há uma demanda internacional por planos eficazes de combate à corrupção. Concordo com Bush, quem diria?, quando afirma que os corruptos na política são assassinos de sonhos.
Nossa concordância pára aí, pois os salvadores do mundo, também, com perspectivas utópicas, podem não apenas assassinar sonhos mas crianças e civis inocentes.
A decisão do Banco Mundial de recusar financiamento a países que não tenham planos consistentes de combate à corrupção é um dado novo. Lembra um pouco o que aconteceu no meio ambiente.
Com o planeta ameaçado, os orgãos de financiamento passaram a incorporar a variável ambiental em seus empréstimos.
A esquerda clássica nos acusa de moralistas, representantes de uma corrente que deveria ter morrido com a velha UDN.
Assim como a ecologia, a luta contra a corrupção será uma grande onda. Quem a conduzir tem de compreender a grandeza do tema e considerá-la superior aos partidos, objeto digno de um acordo nacional.
Suponhamos que perdemos R$ 10 bilhões por ano com corrupção. Claro que não conseguiremos zerar o prejuízo. Vamos, apenas, atenuar o problema. Ainda por cima, teremos de gastar dinheiro com o controle, que tem de ser muito mais extenso e sofisticado. Os 1.800 fiscais da CGU têm, teoricamente, a tarefa de monitorar 161 mil convênios.
Nesse simples abismo de números, podemos constatar que nossos mecanismos de controle abarcam 10% do problema.
Com todas as dificuldades, vale a pena investir. A esquerda pode relutar, com o argumento clássico de que o capitalismo gera corrupção.
Empurrar o capitalismo para a frente é a única forma de demonstrar que ele não é um fato da natureza. Teses que se baseiam na pobreza do socialismo real estão fadadas ao fracasso, penso eu.
O artigo de Jurgen Habermas, publicado no Brasil, deveria ser um bom tema de debate dos intelectuais que afirmam o esquecimento da política. O remanescente do grupo de Frankfurt afirma o contrário: de uma certa forma, são os intelectuais que estão sendo esquecidos, superados pelas novas formas de comunicação.
O que parece uma chatice moralista, a luta contra a corrupção, pode ser um elemento chave para mobilizar e despertar num país a vontade de competir no mundo globalizado. No princípio, os ecologistas eram uns chatos, falando de viadinhos e baleias.
Mas nada como um aquecimento na nuca para o planeta perceber que alguma coisa vai mal.
Com a corrupção, talvez seja preciso um cheiro de fumaça para apressar as coisas: a estrutura política apodrecida tornou-se um obstáculo para o país.
Hoje, somos forçados a estudar a história para resolver os problemas do presente. Quem sabe, num futuro próximo, poderei voltar a Pedro Nava, apenas para fruir essa delicada relação com o tempo.


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