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FERREIRA GULLAR
Estamos nas mãos deles
Você tem plano de saúde, mas, nas mãos deles, sabe que morre na fila do SUS se adoecer
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ESTAMOS NAS mãos deles. Se
você mora no subúrbio e anda
de ônibus, está nas mãos deles. Há o ônibus mais barato e o outro, com ar refrigerado, mais caro. O
mais barato não vem nunca e você é
obrigado a tomar o mais caro, com
ar refrigerado, mesmo no inverno. O
transporte urbano é uma concessão
e a empresa que explora essa concessão tem obrigações que ela não
cumpre e as autoridades fazem que
não vêem. Estamos nas mãos deles.
Se você é idoso, está nas mãos deles. Já que existe uma lei que obriga,
por exemplo, os supermercados a
reservarem um caixa exclusivamente para os idosos, o gerente busca um
modo de burlar a lei. É que ele quer
subir na empresa e, para isso, vende
a alma ao diabo. Fila exclusiva para
idoso é mais um caixa, mais despesa.
Então, num supermercado aqui de
Copacabana, o gerente bolou uma
saída: pôs uma placa dizendo que o
idoso tem preferência em todos os
caixas, ou seja, não tem em nenhum.
Claro, qual é o idoso que tem coragem de passar na frente de 20 pessoas numa fila? A caixa especial para
o idoso é lei, mas o supermercado
não cumpre e fica por isso mesmo.
É uma das razões por que digo: estamos todos nas mãos deles. Por
exemplo, você paga um plano de
saúde, que raramente usa, mas, como está nas mãos deles, sabe que, se
um dia adoecer, morre na fila do
SUS. Mas eis que, em determinado
mês, o boleto de cobrança não vem e
você, às voltas com mil problemas,
não reparou. Aí então recebe um
aviso de que está em débito e terá
que pagar com multa sob pena de
perder o plano de saúde. Pode? Eles
não mandam o boleto de cobrança e
quem paga a multa é você! É que estamos nas mãos deles, cara!
Você assina televisão a cabo, paga
por isso. No começo, a televisão a cabo não tinha anúncio, já que é paga
por você, mas agora todas elas exibem publicidade. Você paga para ver
propaganda? Não há nada a fazer,
senão romper o contrato e deixar de
assistir ao seu seriado predileto. Por
isso, você não rompe e, contrariado,
passa horas a ver publicidade que
não deseja ver. Está nas mãos deles.
Outro dia, um amigo me contou:
preparava-se para assistir, no Pan, à
partida final da seleção brasileira de
vôlei contra a seleção americana, e
eis que a conexão se rompe. Surge na
tela uma janela onde estava escrito:
indisponível. Ele tentou mudar de
canal. Desligou o equipamento, ligou de novo e o aviso continuava lá:
indisponível. Depois de tudo tentar,
decidiu ligar para o provedor. Atendeu uma voz feminina muito gentil
que dizia: para resolver tal problema, disque um; para tal, disque dois,
para aquele outro, disque três, e por
aí foi: disque quatro, disque cinco,
disque seis etc. Depois de ouvir pacientemente aquilo, discou o número que supunha corresponder à sua
solicitação. Outra voz atendeu: para
tal coisa, disque um; para tal, disque
dois; para tal, disque três... e por aí
foi. Ele discou um dos números indicados e aí começou outra voz a falar,
mas agora fazendo propaganda da
programação daquela empresa.
Finalmente, uma voz de homem
perguntou-lhe o que desejava. Ele
explicou que surgira na tela a tal janela e que não conseguia conectar. A
voz perguntou-lhe em que bairro
morava e pediu um momento para
verificar. Minutos depois, informou:
caro cliente, não tenho condição de
verificar o seu problema, terá que ligar de novo para ser atendido por
outra pessoa. Sem nada entender, ligou de novo e mais uma vez passou
por toda aquela tortura a que já tinha se submetido antes e quando,
enfim, uma voz feminina o atendeu,
respirou aliviado. Só que não havia
motivo para alívio: a voz da moça informou-o de que ocorrera uma pane
no sistema de reparos e por isso não
podia atendê-lo.
- E eu faço o quê?, perguntou meu
amigo.
- Não podemos fazer a conexão.
- Sim, e eu faço o quê?
- O senhor terá que esperar até
que superemos o nosso problema.
- E isso deve demorar quanto tempo?
- Não sei informar, senhor.
Meu amigo, furioso, berrou que
aquilo era um abuso, que ele pagava
por aquele serviço, que ele ia perder
o jogo do Brasil, mas de nada adiantou. É que estamos nas mãos dele,
entendeu?
Contei essa história a outro amigo,
que me falou:
- E eu, que estou inadimplente
junto ao Banco Central por causa de
um cheque de R$ 56!
- Mas como?
- Achando que tinha ainda R$ 100
na conta, paguei o jantar no restaurante com um cheque de R$ 56. Na
conta só restavam R$ 30 e, embora
nessa mesma conta houvesse uma
aplicação de R$ 1.200, o gerente devolveu o cheque, que foi reapresentado pelo restaurante. Tornei-me
inadimplente perante a nação brasileira, eu, que nunca recebi mensalão, num participei de valerioduto,
nunca vendi vacas inexistentes,
nunca me deixei subornar por bicheiros nem traficantes.
- É, amigo, estamos nas mãos deles.
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