São Paulo, quarta-feira, 26 de agosto de 2009

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MARCELO COELHO

Suicídio e narração


Livro de Thomas Bernhard mostra os dilemas e a insegurança do autor moderno


QUALQUER ESCRITOR moderno, imagino, tem dificuldades ao começar um texto de ficção. Que nome dar ao personagem principal? No arbítrio dessa escolha subjetiva -Gregório, Evaristo, Elizabeth- já está em curso uma operação suspeita.
Recuam para um passado distante as facilidades narrativas de um Balzac, de um Stendhal, de um Manzoni, que começavam seus romances com o mais tranquilo sorriso.
"A pequena cidade de Verrières", escreve Stendhal ("O Vermelho e o Negro"), "pode passar como uma das mais encantadoras do Franco-Condado."
"Madame Vauquer" -é Balzac no início de "Pai Goriot"-, "de Conflans pelo nome de solteira, é uma velha senhora que, há quarenta anos, mantém em Paris uma pensão (...)."
Quanto a Manzoni, abre seu "Os Noivos" com uma paisagem: "O ramo do lago de Como, que se estende para o sul, entre duas cordilheiras (...)". E, alguns parágrafos adiante, apresenta um personagem simpático e (saberemos depois) pusilânime.
"Numa dessas estradas passeava, de volta para casa, na tarde de 7 de novembro de 1628, Dom Abbondio, cura duma dessas povoações..."
Não caberiam citações mais longas aqui. O notável, nesses inícios de romance, é a segurança subjetiva do narrador. Existe a certeza, com efeito, de estar puxando o leitor "pelo nariz"; estamos diante de alguém plenamente consciente de onde quer chegar, e tranquilo quanto ao fato de que iremos ler o romance até o fim.
É bem diverso, acredito, o jogo proposto pela literatura moderna, e ainda que existam começos de grande impacto nos romances do século 20 (o da "Metamorfose" de Kafka, por exemplo), algo se perdeu na relação entre leitor e narrador.
O ato aparentemente simples de "estabelecer" uma realidade (a cidadezinha de Verrières, os arredores do lago de Como) parece ter sido corroído em suas bases. O autor ficcional perdeu, digamos assim, sua "autoridade".
Escrevo tudo isso pensando nos estranhíssimos relatos de Thomas Bernhard (1931-1989), reunidos em "O Imitador de Vozes", que acaba de sair pela Companhia das Letras.
Cada pequeno conto é de uma factualidade extrema, imitando notícias de jornal. O nome do personagem e o lugar de suas ações (em geral, obscuros lugarejos europeus) é sempre mencionado.
Mas estão ausentes o sorriso, a segurança do narrador antigo. Tudo assusta, na aparente objetividade dos escritos de Bernhard.
"Bombeiros de Krems foram levados a julgamento porque retiraram a rede de salvamento que haviam estendido e saíram correndo bem no momento em que o suicida, que fazia várias horas ameaçava saltar de uma saliência do quarto andar de um edifício residencial de Krems, efetivamente saltou."
O conto prossegue por algumas linhas a mais. Bastaria esse início, entretanto, para dar conta do que está em curso. Repete-se o nome da cidade (Krems), não por intenção realista, mas como metáfora da insistência suicida do pobre homem.
Tudo ganha a intencional frieza de um relato jornalístico, e talvez essa mesma frieza constitua uma das chaves da literatura moderna.
Um texto inaugural, a esse respeito, é o de Heinrich von Kleist (1777-1811), que em sua "Marquesa de O" reproduz, não o espanto que um leitor deve ter, mas sim o espanto que os leitores de um jornal da época tiveram diante do singular destino de sua personagem.
"Em M., importante cidade no norte da Itália, a viúva Marquesa de O..., senhora de excelente reputação e mãe de várias crianças bem cuidadas, fez saber pelos jornais que sem seu próprio conhecimento tornou-se grávida..."
Eis a estranheza de um tipo de ficção que nada mais tem a ver com Balzac ou Stendhal.
Será a mesma ficção presente num Arthur Schnitzler (1862-1931), por exemplo, de quem andei lendo os "Contos de Amor e Morte", editado anos atrás pela Companhia das Letras.
O fato, o fato bruto e jornalístico, aparece em Schnitzler tanto quanto em Thomas Bernhard. O tempo da narração, o passo tranquilo do romancista, tão nítidos em Balzac, Stendhal e Manzoni, sumiram do horizonte.
Cada acontecimento talvez tenha, nos dias de hoje, a violência surda de um suicídio: comparece como um baque, uma queda, um acontecimento negativo e brusco. O tempo das grandes mortes heroicas e das salvações extremas, que ocupou tantos romances, provavelmente passou.

coelhofsp@uol.com.br

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