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BERNARDO CARVALHO
Entre o cinismo e a crença
O fato de agentes do mercantilismo se passarem por críticos do mercantilismo diz muito sobre nosso tempo
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SE, COMO tudo indica, nem mesmo a desfaçatez da tentativa de
compra do dossiê dos sanguessugas for capaz de prejudicar a reeleição de Lula; e se, como indicava uma nota recente publicada pela revista "Veja" com base numa pesquisa do Ibope, Paulo Maluf for de fato
o deputado mais votado em todo o
país nesta eleição, fica provado que a
corrupção endêmica não é exatamente o que mais preocupa o eleitor
brasileiro. Pelo menos, aquele que
se diz indignado com a bandidagem
do PT (mas vota em Maluf) e o que
ainda tenta se convencer de que vota
no PT contra a bandidagem alheia.
A indignação dos corruptos que
aderem ao lema de última hora, fazendo da guerra à corrupção uma
palavra de ordem eleitoreira e esvaziada, também só ajuda a privar de
valor e sentido o próprio combate à
corrupção, uma vez que já não se pode confiar em palavra nenhuma,
nem em ninguém. Se as palavras não
correspondem às coisas, se foram
reduzidas a estratégia de marketing
e propaganda (tanto à direita como à
esquerda), só resta combatê-las em
bloco, o que seria um contra-senso.
Nesse contexto imobilizador, ficamos encurralados entre o cinismo e
a crença (daí a sedução suicida, embora legítima e justificada, do voto
nulo).
O fenômeno não se restringe à política. Numa entrevista recente à
BBC, o escritor americano Chuck
Palahniuk (autor do best-seller
"Clube da Luta" e do mais recente
"Haunted", entre outros) dizia que a
literatura, por não precisar do orçamento milionário de um filme, estaria livre para experimentar. Desde
que o livro foi transformado em produto de massa e as editoras em grandes corporações, a partir dos anos
80, isso já não é verdade. A experimentação na literatura é relativamente tão limitada pelo mercado
editorial quanto o cinema pelo mercado cinematográfico (do qual o livro de ficção depende cada vez
mais). O próprio Palahniuk revela
involuntariamente o quanto há de
retórica no seu discurso ao dar como
exemplo de "experimentação" a capacidade de levar o leitor do riso às
lágrimas em poucos minutos (na entrevista à BBC, citava com orgulho o
fato de jovens na platéia desmaiarem durante suas leituras), uma façanha que corresponderia muito
mais aos modelos dos manuais de
roteiros de Hollywood do que à liberdade de criação literária, que em
princípio deveria ser o oposto dos
modelos.
O fato de agentes do mercantilismo se fazerem passar por críticos do
mercantilismo do qual eles mesmos
se alimentam (e de técnicas de persuasão emocional serem chamadas
de experimentação literária) diz
muito sobre os tempos em que vivemos e faz pensar nos estudos sociológicos desenvolvidos por Franco
Moretti, professor de literatura
comparada da Universidade Stanford e irmão do cineasta Nanni Moretti.
Em "Slaughterhouse of Literature" ("Matadouro da Literatura"),
ensaio publicado em 2000, que está
na origem de um de seus livros mais
controvertidos ("Graphs, Maps,
Trees", ed. Verso, 2005), Moretti dá
a entender, por meio de uma espécie
de darwinismo cultural mais preocupado com o sistema literário como um todo do que com as obras em
si, que não há ruptura em literatura;
tudo funciona por oferta e demanda,
conforme as leis de mercado. Só sobrevive o que o público quer ler.
Com base na constatação de que
milhares de romances policiais publicados desde meados do século 19
desapareceram no esquecimento e
que apenas um punhado passou para a história, Moretti nos leva a concluir que a idéia de uma criação literária capaz de se impor ao contrariar
as expectativas do seu tempo seria
uma fantasia como outras utopias
da modernidade. Se o que entra para
a história e para o cânone (o que sobrevive) é o romance que mais corresponde ao que o público quer ler,
as rupturas e a criação de ofertas
inesperadas, sem demanda, não passariam de ilusões.
Não é casual que o pensamento de
Moretti, verdadeiro ou não, se manifeste justo numa época desiludida
(se a literatura está sempre atrelada
à demanda do público e do seu tempo, como ele diz, também não haveria por que a sociologia da literatura,
ao contrário dela, ficar pairando sobre os fatos sociais como um discurso absoluto e extemporâneo). Ao
tentar desmistificar o cânone, ele
derruba junto toda uma concepção
moderna da literatura. Pois, a julgar
por esse discurso que, embora provocador e lúdico à primeira vista,
corresponde a um tempo de cinismo
e de imobilização, o escritor que insiste em ver na literatura uma ação
individual e libertária ou é hipócrita
ou é crente.
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