São Paulo, terça-feira, 26 de setembro de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Entre o cinismo e a crença


O fato de agentes do mercantilismo se passarem por críticos do mercantilismo diz muito sobre nosso tempo

SE, COMO tudo indica, nem mesmo a desfaçatez da tentativa de compra do dossiê dos sanguessugas for capaz de prejudicar a reeleição de Lula; e se, como indicava uma nota recente publicada pela revista "Veja" com base numa pesquisa do Ibope, Paulo Maluf for de fato o deputado mais votado em todo o país nesta eleição, fica provado que a corrupção endêmica não é exatamente o que mais preocupa o eleitor brasileiro. Pelo menos, aquele que se diz indignado com a bandidagem do PT (mas vota em Maluf) e o que ainda tenta se convencer de que vota no PT contra a bandidagem alheia.
A indignação dos corruptos que aderem ao lema de última hora, fazendo da guerra à corrupção uma palavra de ordem eleitoreira e esvaziada, também só ajuda a privar de valor e sentido o próprio combate à corrupção, uma vez que já não se pode confiar em palavra nenhuma, nem em ninguém. Se as palavras não correspondem às coisas, se foram reduzidas a estratégia de marketing e propaganda (tanto à direita como à esquerda), só resta combatê-las em bloco, o que seria um contra-senso. Nesse contexto imobilizador, ficamos encurralados entre o cinismo e a crença (daí a sedução suicida, embora legítima e justificada, do voto nulo).
O fenômeno não se restringe à política. Numa entrevista recente à BBC, o escritor americano Chuck Palahniuk (autor do best-seller "Clube da Luta" e do mais recente "Haunted", entre outros) dizia que a literatura, por não precisar do orçamento milionário de um filme, estaria livre para experimentar. Desde que o livro foi transformado em produto de massa e as editoras em grandes corporações, a partir dos anos 80, isso já não é verdade. A experimentação na literatura é relativamente tão limitada pelo mercado editorial quanto o cinema pelo mercado cinematográfico (do qual o livro de ficção depende cada vez mais). O próprio Palahniuk revela involuntariamente o quanto há de retórica no seu discurso ao dar como exemplo de "experimentação" a capacidade de levar o leitor do riso às lágrimas em poucos minutos (na entrevista à BBC, citava com orgulho o fato de jovens na platéia desmaiarem durante suas leituras), uma façanha que corresponderia muito mais aos modelos dos manuais de roteiros de Hollywood do que à liberdade de criação literária, que em princípio deveria ser o oposto dos modelos.
O fato de agentes do mercantilismo se fazerem passar por críticos do mercantilismo do qual eles mesmos se alimentam (e de técnicas de persuasão emocional serem chamadas de experimentação literária) diz muito sobre os tempos em que vivemos e faz pensar nos estudos sociológicos desenvolvidos por Franco Moretti, professor de literatura comparada da Universidade Stanford e irmão do cineasta Nanni Moretti.
Em "Slaughterhouse of Literature" ("Matadouro da Literatura"), ensaio publicado em 2000, que está na origem de um de seus livros mais controvertidos ("Graphs, Maps, Trees", ed. Verso, 2005), Moretti dá a entender, por meio de uma espécie de darwinismo cultural mais preocupado com o sistema literário como um todo do que com as obras em si, que não há ruptura em literatura; tudo funciona por oferta e demanda, conforme as leis de mercado. Só sobrevive o que o público quer ler.
Com base na constatação de que milhares de romances policiais publicados desde meados do século 19 desapareceram no esquecimento e que apenas um punhado passou para a história, Moretti nos leva a concluir que a idéia de uma criação literária capaz de se impor ao contrariar as expectativas do seu tempo seria uma fantasia como outras utopias da modernidade. Se o que entra para a história e para o cânone (o que sobrevive) é o romance que mais corresponde ao que o público quer ler, as rupturas e a criação de ofertas inesperadas, sem demanda, não passariam de ilusões.
Não é casual que o pensamento de Moretti, verdadeiro ou não, se manifeste justo numa época desiludida (se a literatura está sempre atrelada à demanda do público e do seu tempo, como ele diz, também não haveria por que a sociologia da literatura, ao contrário dela, ficar pairando sobre os fatos sociais como um discurso absoluto e extemporâneo). Ao tentar desmistificar o cânone, ele derruba junto toda uma concepção moderna da literatura. Pois, a julgar por esse discurso que, embora provocador e lúdico à primeira vista, corresponde a um tempo de cinismo e de imobilização, o escritor que insiste em ver na literatura uma ação individual e libertária ou é hipócrita ou é crente.


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