São Paulo, quarta-feira, 26 de setembro de 2007

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MARCELO COELHO

Teoria e prática da meninice

"O Livro Perigoso..." é uma espécie de manual do escoteiro-mirim, só que para crianças reais

PARA CONSTRUIR uma casa de madeira no alto de uma árvore você precisa de muita coisa: por exemplo, 20 metros de tábuas de pinho, oito parafusos auto-atarraxantes de 20 centímetros, quatro pitões grandes que possam ser aparafusados no tronco, um formão para abrir as cavidades das dobradiças da porta alçapão...
Além de uma árvore, é claro, e de um pai marceneiro. Tudo bem. Conn e Hal Iggulden, autores de "O Livro Perigoso para Garotos" (editora Record), admitem que não é uma empreitada para qualquer um.
Mas o livro, que acaba de ser traduzido (e muito bem adaptado) para os leitores brasileiros, ensina muito mais. Traz informações sobre códigos militares, primeiros socorros, insetos, truques com moedas, exploradores, batalhas e bolas de gude.
Seria uma espécie de grande manual do escoteiro-mirim, só que dirigido a crianças reais, e não aos sobrinhos do Pato Donald. No mundo de Conn e Hal Iggulden, não existe graça nenhuma em atirar flechas com aquelas ventosas de borracha na ponta. O leitor aprenderá a construir flechas "de verdade", com pontas de sílex ou de lata.
Construirá pilhas elétricas e, se for habilidoso o suficiente (imagino que ao atingir uns 30 anos de idade), poderá montar um dispositivo chamado "placa de pressão". Trata-se de um quadradinho que pode ser escondido debaixo do tapete, e que ao ser pisado irá acender uma lâmpada de alarme.
Mais simples, sem dúvida, será a confecção de estilingues ou periscópios. Quem estiver desistindo de ser um "garoto real" pode, em todo caso, ler as dicas sobre o aviãozinho de papel perfeito.
"Garoto real"? Talvez seja mais difícil encontrar essa entidade do que o sulfato duplo de alumínio e potássio indicado pelos autores para a fabricação doméstica de cristais. O livro, aliás, explica: trata-se da pedra-ume, à venda em qualquer farmácia. Seja como for, sob a aparência de um manual prático, "O Livro Perigoso para Garotos" tem na verdade o sabor de uma peça de ficção, e quase as intenções de um manifesto. É como se os autores dissessem, para crianças dominadas pelo Nintendo e pela TV, que "uma outra infância é possível".
Mais exatamente, a infância semi-rural de começos do século 20. O livro é uma peça de nostalgia, não só pelos divertimentos que propõe, mas também pelos valores que incorpora. Sua epígrafe é uma declaração de Sir Frederick Treves, comandante da Ordem Real da Vitória, escrita em 1903: "O melhor lema para uma longa marcha é "Não resmungue. Agüente" (...) Seja leal. (...) Lembre que a coisa mais difícil de conseguir é a faculdade de ser altruísta.
Como qualidade, é um dos mais belos atributos da masculinidade". Pode-se acrescentar que "masculinidade", mais do que o altruísmo, é a faculdade que os garotos mais desejam ter. Buscam-na, virtualmente, nos games sangrentos e nos filmes de super-heróis. "O Livro Perigoso..." abre-lhes a possibilidade de se defrontarem com brinquedos mais ásperos e concretos. Mas tendo a achar que a realidade apresentada pelo livro é tão virtual quanto a das telas do computador.
"Mãe da Rua", de Ettore Bottini (Cosac Naify) tem vários pontos em comum com o "Livro Perigoso...". Maravilhosamente ilustrado, ensina a bater figurinha, fazer pipa, rodar pião.
Não se propõe, contudo, a ser um manual. Enquanto o texto de Hal e Conn Iggulden se mostra secretamente irônico na medida em que assume um tom prático ao propor atividades quase impraticáveis, "Mãe da Rua" traz a ironia para o primeiro plano, utilizando a linguagem mais adulta, mais "tecnocrática" possível, para rememorar as brincadeiras de uma infância paulistana no comecinho da década de 60.
A transformação de um terreno baldio em campinho de futebol é narrada como se fosse um relatório do BNDES: "Traçamos um cronograma preliminar (...) fizemos um levantamento da infra-estrutura" etc.
O humor não disfarça, é claro, a dor de rememorar uma cidade em que era possível brincar na rua e soltar balões. A saudade, quase palpável em algumas fotos do livro, justifica-se plenamente.
Não há muito como se consolar dessa sensação; exceto, talvez, com um pouco mais de pessimismo. Se aquela meninice de rua desapareceu de São Paulo, cabe lembrar que toda infância, mesmo a mais contemporânea, tecnológica e asséptica, segue o mesmo caminho; será sempre perdida.


coelhofsp@uol.com.br

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