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MARCELO COELHO
Teoria e prática da meninice
"O Livro Perigoso..." é uma espécie de manual do escoteiro-mirim, só que para crianças reais
PARA CONSTRUIR uma casa de
madeira no alto de uma árvore
você precisa de muita coisa:
por exemplo, 20 metros de tábuas
de pinho, oito parafusos auto-atarraxantes de 20 centímetros, quatro
pitões grandes que possam ser aparafusados no tronco, um formão para abrir as cavidades das dobradiças
da porta alçapão...
Além de uma árvore, é claro, e de
um pai marceneiro. Tudo bem.
Conn e Hal Iggulden, autores de "O
Livro Perigoso para Garotos" (editora Record), admitem que não é uma
empreitada para qualquer um.
Mas o livro, que acaba de ser traduzido (e muito bem adaptado) para
os leitores brasileiros, ensina muito
mais. Traz informações sobre códigos militares, primeiros socorros,
insetos, truques com moedas, exploradores, batalhas e bolas de gude.
Seria uma espécie de grande manual do escoteiro-mirim, só que dirigido a crianças reais, e não aos sobrinhos do Pato Donald. No mundo
de Conn e Hal Iggulden, não existe
graça nenhuma em atirar flechas
com aquelas ventosas de borracha
na ponta. O leitor aprenderá a construir flechas "de verdade", com pontas de sílex ou de lata.
Construirá pilhas elétricas e, se
for habilidoso o suficiente (imagino
que ao atingir uns 30 anos de idade),
poderá montar um dispositivo chamado "placa de pressão". Trata-se
de um quadradinho que pode ser escondido debaixo do tapete, e que ao
ser pisado irá acender uma lâmpada
de alarme.
Mais simples, sem dúvida, será a
confecção de estilingues ou periscópios. Quem estiver desistindo de ser
um "garoto real" pode, em todo caso,
ler as dicas sobre o aviãozinho de papel perfeito.
"Garoto real"? Talvez seja mais difícil encontrar essa entidade do que
o sulfato duplo de alumínio e potássio indicado pelos autores para a fabricação doméstica de cristais. O livro, aliás, explica: trata-se da pedra-ume, à venda em qualquer farmácia.
Seja como for, sob a aparência de
um manual prático, "O Livro Perigoso para Garotos" tem na verdade o
sabor de uma peça de ficção, e quase
as intenções de um manifesto. É como se os autores dissessem, para
crianças dominadas pelo Nintendo
e pela TV, que "uma outra infância é
possível".
Mais exatamente, a infância semi-rural de começos do século 20. O livro é uma peça de nostalgia, não só
pelos divertimentos que propõe,
mas também pelos valores que incorpora. Sua epígrafe é uma declaração de Sir Frederick Treves, comandante da Ordem Real da Vitória, escrita em 1903: "O melhor lema para
uma longa marcha é "Não resmungue. Agüente" (...) Seja leal. (...) Lembre que a coisa mais difícil de conseguir é a faculdade de ser altruísta.
Como qualidade, é um dos mais belos atributos da masculinidade".
Pode-se acrescentar que "masculinidade", mais do que o altruísmo, é
a faculdade que os garotos mais desejam ter. Buscam-na, virtualmente, nos games sangrentos e nos filmes de super-heróis. "O Livro Perigoso..." abre-lhes a possibilidade de
se defrontarem com brinquedos
mais ásperos e concretos. Mas tendo
a achar que a realidade apresentada
pelo livro é tão virtual quanto a das
telas do computador.
"Mãe da Rua", de Ettore Bottini
(Cosac Naify) tem vários pontos em
comum com o "Livro Perigoso...".
Maravilhosamente ilustrado, ensina
a bater figurinha, fazer pipa, rodar
pião.
Não se propõe, contudo, a ser um
manual. Enquanto o texto de Hal e
Conn Iggulden se mostra secretamente irônico na medida em que assume um tom prático ao propor atividades quase impraticáveis, "Mãe
da Rua" traz a ironia para o primeiro
plano, utilizando a linguagem mais
adulta, mais "tecnocrática" possível,
para rememorar as brincadeiras de
uma infância paulistana no comecinho da década de 60.
A transformação de um terreno
baldio em campinho de futebol é
narrada como se fosse um relatório
do BNDES: "Traçamos um cronograma preliminar (...) fizemos um
levantamento da infra-estrutura"
etc.
O humor não disfarça, é claro, a
dor de rememorar uma cidade em
que era possível brincar na rua e soltar balões. A saudade, quase palpável em algumas fotos do livro, justifica-se plenamente.
Não há muito como se consolar
dessa sensação; exceto, talvez, com
um pouco mais de pessimismo. Se
aquela meninice de rua desapareceu
de São Paulo, cabe lembrar que toda
infância, mesmo a mais contemporânea, tecnológica e asséptica, segue
o mesmo caminho; será sempre perdida.
coelhofsp@uol.com.br
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