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"O cinema representa uma rebelião"
Atriz francesa Jeanne Moreau, homenageada no Festival do Rio, fala à Folha sobre carreira, Brasil e François Truffaut
Estrela de filmes como "Jules e Jim", de Truffaut, e "Diário de uma Camareira", de Buñuel, atriz participa hoje de debate
no Rio de Janeiro
LEONARDO CRUZ
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Jeanne Moreau não se considera uma estrela. Nem diva do
cinema. Nem musa da nouvelle
vague. Aos 81 anos, a atriz francesa prefere outra definição:
"Sou e sempre fui rebelde". Rebeldia que vê como vital para a
arte que a tornou conhecida. "O
cinema representa uma rebelião de parte da sociedade. É
muito saudável para qualquer
país ter um cinema forte, que
discuta questões."
Principal homenageada do
Festival do Rio, Moreau conversa com a Folha no apartamento do cônsul francês na cidade no bairro do Flamengo.
Usa roupas discretas e elegantes (calça preta, blusa branca e
preta) e um colar de ouro branco, com uma pequena estrela
de cinco pontas. A sobriedade
dos trajes contrasta com o relógio de pulso moderno, de um
vermelho quase rosa-choque.
Durante a entrevista, fuma
um cigarro mentolado superlongo francês, toma Coca-Cola
com muito gelo e atravessa o
repórter com o mesmo olhar
profundo, questionador, da Catherine de "Jules e Jim" (1962),
um de seus personagens mais
famosos. Nas respostas, é gentil, mas incisiva. Nas fotos, rejeita um pedido do fotógrafo
para se voltar em direção à luz.
A inquietação de Moreau
vem de cedo. De mãe inglesa e
pai francês, ela cresceu numa
Paris ocupada pelos alemães,
durante a Segunda Guerra. Seu
pai estava no Exército e criava
a filha com rigor. Ela não podia
ler jornais nem ver filmes e peças. Aos 15 anos, mentiu em casa e foi ao teatro pela primeira
vez, com três amigas. Era "Antígona", de Sófocles.
"Soube que ali era o local onde queria estar. Por causa da
heroína da peça, que diz "não"
ao poder, se rebela. Quando
contei em casa que queria ser
atriz, meu pai me estapeou."
Apoiada pela mãe, ela fez aulas de interpretação e aos 20
anos entrou para a tradicional
Comédie-Française. Atuou no
cinema e no teatro em papéis
menores até meados dos anos
50. A fama internacional surgiu
a partir de 1957, quando fez
"Gata em Teto de Zinco Quente", de Tennessee Williams, dirigida por Peter Brook.
Malle e os peixes
Foi essa montagem que chamou a atenção de Louis Malle,
então conhecido pelas imagens
submarinas de "O Mundo Silencioso", feito com Jacques
Cousteau. "Meu agente não
queria que eu trabalhasse com
Louis. "Esse homem só sabe filmar peixes", dizia. Mas me interessei por Louis e por suas
ideias, troquei de agente e fiz
"Ascensor para o Cadafalso"."
Malle e Moreau namoraram
e ele a apresentou a François
Truffaut no Festival de Cannes
de 1958. "Quando Louis estava
longe, François pediu meu telefone e disse que queria me
mandar um livro. Era "Jules e
Jim"." Ela apareceria em três
longas de Truffaut, incluindo
os dois principais dele na nouvelle vague: "Os Incompreendidos", em um pequeno papel, e
"Jules e Jim", como Catherine,
vértice do mais célebre triângulo amoroso do cinema.
Além de protagonista, Moreau ajudou a financiar o filme,
quando um dos produtores deixou o projeto no meio.
A atriz sempre expressou a
opinião forte nos sets. Em 1962,
quando filmava "Eva" na Itália
com Joseph Losey, foi além das
palavras com os irmãos Hakim,
produtores que haviam cortado
dinheiro e queriam tirar cenas
do filme. "Eles foram à Cinecittà.
Havia uma mesa enorme no
fundo, onde a equipe do filme
comia. E havia uma faca grande
para cortar pão. Ameacei um
deles com uma faca. Disse que
abriria o estômago dele se ele
não fosse embora. Ele foi."
Sobre a criação de personagens, diz que sempre depende
do diretor e exemplifica: "Don
Luis [Buñuel, com quem fez
"Diário de uma Camareira']
nunca falava sobre um filme ou
um personagem. Nunca. Eu conhecia os filmes dele e intuía.
Descobria o personagem só no
set. Orson [Welles, com quem
fez quatro filmes] era parecido,
não intelectualizava. Você nunca sabia o que iria filmar. Ele
não deixava ver o roteiro. Só dava algumas indicações".
Moreau prefere a forma mais
intuitiva. "Nunca decoro as falas. Mas leio o roteiro todos os
dias. Do começo ao fim, para
ver como o personagem se encaixa. Orson me dizia que ser
ator é como ter nascido em um
trem que ficará rodando por
décadas sem parar. E você precisa ter tudo em uma mala.
Guarde nessa mala sua história,
ideias, emoções. Não deixe nada para trás. E você as usa
quando o personagem pede."
A atriz afirma que se entrega
totalmente aos personagens
para criar algo novo, que não se
pareça com ela. E que, encerrada a filmagem, se separa totalmente de sua criação. "Algumas vezes nem vejo os filmes
prontos. Já os vi de perto demais. As memórias vão muito
além do que está na tela."
Calor, cachaça e freiras
Memórias como as das filmagens de "Joana Francesa", com
Cacá Diegues, em 1973, quando
interpretou a dona de um prostíbulo que, nos anos 30, se deixa
levar por um cliente para uma
fazenda de cana em Alagoas.
"Cacá me convidou, fiquei
encantada com a ideia, com a
possibilidade de conhecer um
novo país. O que mais me lembro é da cachaça. Bebíamos
muito. Lembro-me do calor. Da
dona Maria, da fazenda em que
filmamos perto de Marechal
Deodoro [AL]. Não havia hotéis
lá. Tive de dormir em um convento. Era obrigada a estar no
quarto antes das dez da noite,
enquanto os brasileiros da produção ficavam se divertindo.
Lembro-me de ter acordado
uma vez no meio da noite com
duas freiras me olhando. Foi
uma experiência muito poderosa, durante dois meses."
É Diegues quem, chamado
por Moreau, entra na conversa
para contar que os dois se conheceram três anos antes, em
Paris, numa sessão privada de
"Amor Louco", de Jacques Rivette. Ele aproveita a intervenção para dizer à atriz que quer
gravar um depoimento com ela
para o DVD de "Joana Francesa" -o filme está sendo restaurado e será relançado em 2010.
Passados breves 40 minutos,
a entrevista é encerrada. A
agenda é apertada. Não dá para
falar de outros cineastas com
quem trabalhou. Antonioni,
Demy, Fassbinder e Wenders
ficam para outra conversa.
O jornalista LEONARDO CRUZ viaja a convite do Festival do Rio.
NO BLOG - Leia a íntegra da entrevista com Jeanne Moreau
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