São Paulo, sábado, 26 de setembro de 2009

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"O cinema representa uma rebelião"

Atriz francesa Jeanne Moreau, homenageada no Festival do Rio, fala à Folha sobre carreira, Brasil e François Truffaut

Estrela de filmes como "Jules e Jim", de Truffaut, e "Diário de uma Camareira", de Buñuel, atriz participa hoje de debate no Rio de Janeiro


LEONARDO CRUZ
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Jeanne Moreau não se considera uma estrela. Nem diva do cinema. Nem musa da nouvelle vague. Aos 81 anos, a atriz francesa prefere outra definição: "Sou e sempre fui rebelde". Rebeldia que vê como vital para a arte que a tornou conhecida. "O cinema representa uma rebelião de parte da sociedade. É muito saudável para qualquer país ter um cinema forte, que discuta questões."
Principal homenageada do Festival do Rio, Moreau conversa com a Folha no apartamento do cônsul francês na cidade no bairro do Flamengo. Usa roupas discretas e elegantes (calça preta, blusa branca e preta) e um colar de ouro branco, com uma pequena estrela de cinco pontas. A sobriedade dos trajes contrasta com o relógio de pulso moderno, de um vermelho quase rosa-choque.
Durante a entrevista, fuma um cigarro mentolado superlongo francês, toma Coca-Cola com muito gelo e atravessa o repórter com o mesmo olhar profundo, questionador, da Catherine de "Jules e Jim" (1962), um de seus personagens mais famosos. Nas respostas, é gentil, mas incisiva. Nas fotos, rejeita um pedido do fotógrafo para se voltar em direção à luz.
A inquietação de Moreau vem de cedo. De mãe inglesa e pai francês, ela cresceu numa Paris ocupada pelos alemães, durante a Segunda Guerra. Seu pai estava no Exército e criava a filha com rigor. Ela não podia ler jornais nem ver filmes e peças. Aos 15 anos, mentiu em casa e foi ao teatro pela primeira vez, com três amigas. Era "Antígona", de Sófocles.
"Soube que ali era o local onde queria estar. Por causa da heroína da peça, que diz "não" ao poder, se rebela. Quando contei em casa que queria ser atriz, meu pai me estapeou." Apoiada pela mãe, ela fez aulas de interpretação e aos 20 anos entrou para a tradicional Comédie-Française. Atuou no cinema e no teatro em papéis menores até meados dos anos 50. A fama internacional surgiu a partir de 1957, quando fez "Gata em Teto de Zinco Quente", de Tennessee Williams, dirigida por Peter Brook.

Malle e os peixes
Foi essa montagem que chamou a atenção de Louis Malle, então conhecido pelas imagens submarinas de "O Mundo Silencioso", feito com Jacques Cousteau. "Meu agente não queria que eu trabalhasse com Louis. "Esse homem só sabe filmar peixes", dizia. Mas me interessei por Louis e por suas ideias, troquei de agente e fiz "Ascensor para o Cadafalso"."
Malle e Moreau namoraram e ele a apresentou a François Truffaut no Festival de Cannes de 1958. "Quando Louis estava longe, François pediu meu telefone e disse que queria me mandar um livro. Era "Jules e Jim"." Ela apareceria em três longas de Truffaut, incluindo os dois principais dele na nouvelle vague: "Os Incompreendidos", em um pequeno papel, e "Jules e Jim", como Catherine, vértice do mais célebre triângulo amoroso do cinema.
Além de protagonista, Moreau ajudou a financiar o filme, quando um dos produtores deixou o projeto no meio. A atriz sempre expressou a opinião forte nos sets. Em 1962, quando filmava "Eva" na Itália com Joseph Losey, foi além das palavras com os irmãos Hakim, produtores que haviam cortado dinheiro e queriam tirar cenas do filme. "Eles foram à Cinecittà.
Havia uma mesa enorme no fundo, onde a equipe do filme comia. E havia uma faca grande para cortar pão. Ameacei um deles com uma faca. Disse que abriria o estômago dele se ele não fosse embora. Ele foi." Sobre a criação de personagens, diz que sempre depende do diretor e exemplifica: "Don Luis [Buñuel, com quem fez "Diário de uma Camareira'] nunca falava sobre um filme ou um personagem. Nunca. Eu conhecia os filmes dele e intuía.
Descobria o personagem só no set. Orson [Welles, com quem fez quatro filmes] era parecido, não intelectualizava. Você nunca sabia o que iria filmar. Ele não deixava ver o roteiro. Só dava algumas indicações". Moreau prefere a forma mais intuitiva. "Nunca decoro as falas. Mas leio o roteiro todos os dias. Do começo ao fim, para ver como o personagem se encaixa. Orson me dizia que ser ator é como ter nascido em um trem que ficará rodando por décadas sem parar. E você precisa ter tudo em uma mala.
Guarde nessa mala sua história, ideias, emoções. Não deixe nada para trás. E você as usa quando o personagem pede." A atriz afirma que se entrega totalmente aos personagens para criar algo novo, que não se pareça com ela. E que, encerrada a filmagem, se separa totalmente de sua criação. "Algumas vezes nem vejo os filmes prontos. Já os vi de perto demais. As memórias vão muito além do que está na tela."

Calor, cachaça e freiras
Memórias como as das filmagens de "Joana Francesa", com Cacá Diegues, em 1973, quando interpretou a dona de um prostíbulo que, nos anos 30, se deixa levar por um cliente para uma fazenda de cana em Alagoas.
"Cacá me convidou, fiquei encantada com a ideia, com a possibilidade de conhecer um novo país. O que mais me lembro é da cachaça. Bebíamos muito. Lembro-me do calor. Da dona Maria, da fazenda em que filmamos perto de Marechal Deodoro [AL]. Não havia hotéis lá. Tive de dormir em um convento. Era obrigada a estar no quarto antes das dez da noite, enquanto os brasileiros da produção ficavam se divertindo.
Lembro-me de ter acordado uma vez no meio da noite com duas freiras me olhando. Foi uma experiência muito poderosa, durante dois meses." É Diegues quem, chamado por Moreau, entra na conversa para contar que os dois se conheceram três anos antes, em Paris, numa sessão privada de "Amor Louco", de Jacques Rivette. Ele aproveita a intervenção para dizer à atriz que quer gravar um depoimento com ela para o DVD de "Joana Francesa" -o filme está sendo restaurado e será relançado em 2010.
Passados breves 40 minutos, a entrevista é encerrada. A agenda é apertada. Não dá para falar de outros cineastas com quem trabalhou. Antonioni, Demy, Fassbinder e Wenders ficam para outra conversa.
O jornalista LEONARDO CRUZ viaja a convite do Festival do Rio.

NO BLOG - Leia a íntegra da entrevista com Jeanne Moreau
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