São Paulo, sábado, 26 de setembro de 2009

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LIVROS

Crítica/"Uma Gota de Sangue"

Magnoli faz livro de combate contra cotas

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Não se iluda o leitor com o título da obra. O livro do geógrafo e colunista Demétrio Magnoli não é um compêndio. Trata-se de um texto de intervenção no debate brasileiro sobre cotas raciais.
Seu mérito maior é ter muito menos defeitos que o best-seller "Nós Não Somos Racistas", do jornalista Ali Kamel. A tese é a mesma: as ações afirmativas e o movimento negro resultam de uma armação ideológica. Ela conspira contra o princípio da igualdade perante a lei, contra a ideia de nação e, no caso brasileiro, contra seu generoso mito fundacional, a mestiçagem.
É uma tese boa de briga. Toma partido da sociologia de Gilberto Freyre, em sua oposição com a escola de Florestan Fernandes. Até Barack Obama entra nessa capoeira, como mestiço vingador na pátria da dicotomia entre brancos e negros. Kamel e Magnoli prestam um serviço ao debate insistindo na denúncia da prestidigitação estatística que apagou diferenças entres pardos (mestiços) e pretos, juntando-os na categoria binomial de "negros". Se funciona mal nos Estados Unidos, ainda pior no Brasil.
Magnoli é academicamente mais cuidadoso. O leitor terá de procurar bastante até encontrar passagens tão definitivas e duvidosas sobre o caráter nacional quanto esta: "No Brasil, [...] a fronteira racial não existe na consciência das pessoas" (pág. 366).
Digressões histórico-geográficas sobrecarregam um tanto a leitura com exemplos de países, instituições, movimentos e autores que comprovariam a tese. As partes três e quatro, por exemplo, poderiam ser saltadas sem prejuízo para o fulcro do debate brasileiro.
Seria uma perda pular, contudo, a reconstituição do papel da Fundação Ford na disseminação mundial das ideias "multiculturalistas", chave do esquema interpretativo de Magnoli. É o ponto alto do volume. É, também, o que mais deixa vontade de entender melhor o que possa estar por trás da conspiração denunciada. Fica a impressão de que se trata de minar os movimentos sociais, segmentando-o em demandas identitárias estanques (etnias, gênero, orientação sexual etc.).
Permanece enigmático, porém, por que tal agenda foi encampada nos Estados Unidos tanto por republicanos quanto por democratas. Não se examina a fundo a hipótese de que seja uma tentativa de responder a demanda social legítima: enfrentar iniquidades que não se dissolvem diante do princípio da igualdade.
Não se busque neste livro de combate a propalada generosidade da mestiçagem. Para Magnoli, políticas racialistas ressuscitam o racismo e, em essência, não diferem das políticas do nazismo e do apartheid. Pouco importa se de um lado está o sujeito do preconceito e, de outro, seu objeto -a crença em raças os irmana.
Não há e não pode haver aperfeiçoamento das ações afirmativas. Aos pardos e pretos pobres de hoje, no Brasil, sob o fardo extra de descender mais obviamente de escravos, resta a esperança de que um dia a nação brasileira cumpra a promessa de dar oportunidades iguais para todos -seja em que geração for.


UMA GOTA DE SANGUE

Autor: Demétrio Magnoli
Editora: Contexto
Quanto: R$ 49,90 (400 págs.)
Avaliação: regular




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