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LIVROS
Crítica/"Uma Gota de Sangue"
Magnoli faz livro de combate contra cotas
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
Não se iluda o leitor com
o título da obra. O livro
do geógrafo e colunista Demétrio Magnoli não é um
compêndio. Trata-se de um
texto de intervenção no debate
brasileiro sobre cotas raciais.
Seu mérito maior é ter muito
menos defeitos que o best-seller "Nós Não Somos Racistas",
do jornalista Ali Kamel. A tese é
a mesma: as ações afirmativas e
o movimento negro resultam
de uma armação ideológica. Ela
conspira contra o princípio da
igualdade perante a lei, contra a
ideia de nação e, no caso brasileiro, contra seu generoso mito
fundacional, a mestiçagem.
É uma tese boa de briga. Toma partido da sociologia de Gilberto Freyre, em sua oposição
com a escola de Florestan Fernandes. Até Barack Obama entra nessa capoeira, como mestiço vingador na pátria da dicotomia entre brancos e negros.
Kamel e Magnoli prestam
um serviço ao debate insistindo
na denúncia da prestidigitação
estatística que apagou diferenças entres pardos (mestiços) e
pretos, juntando-os na categoria binomial de "negros". Se
funciona mal nos Estados Unidos, ainda pior no Brasil.
Magnoli é academicamente
mais cuidadoso. O leitor terá de
procurar bastante até encontrar passagens tão definitivas e
duvidosas sobre o caráter nacional quanto esta: "No Brasil,
[...] a fronteira racial não existe
na consciência das pessoas"
(pág. 366).
Digressões histórico-geográficas sobrecarregam um tanto a
leitura com exemplos de países,
instituições, movimentos e autores que comprovariam a tese.
As partes três e quatro, por
exemplo, poderiam ser saltadas
sem prejuízo para o fulcro do
debate brasileiro.
Seria uma perda pular, contudo, a reconstituição do papel
da Fundação Ford na disseminação mundial das ideias "multiculturalistas", chave do esquema interpretativo de Magnoli. É o ponto alto do volume.
É, também, o que mais deixa
vontade de entender melhor o
que possa estar por trás da
conspiração denunciada. Fica a
impressão de que se trata de
minar os movimentos sociais,
segmentando-o em demandas
identitárias estanques (etnias,
gênero, orientação sexual etc.).
Permanece enigmático, porém, por que tal agenda foi encampada nos Estados Unidos
tanto por republicanos quanto
por democratas. Não se examina a fundo a hipótese de que seja uma tentativa de responder a
demanda social legítima: enfrentar iniquidades que não se
dissolvem diante do princípio
da igualdade.
Não se busque neste livro de
combate a propalada generosidade da mestiçagem. Para Magnoli, políticas racialistas ressuscitam o racismo e, em essência, não diferem das políticas do nazismo e do apartheid.
Pouco importa se de um lado
está o sujeito do preconceito e,
de outro, seu objeto -a crença
em raças os irmana.
Não há e não pode haver
aperfeiçoamento das ações
afirmativas. Aos pardos e pretos pobres de hoje, no Brasil,
sob o fardo extra de descender
mais obviamente de escravos,
resta a esperança de que um dia
a nação brasileira cumpra a
promessa de dar oportunidades iguais para todos -seja em
que geração for.
UMA GOTA DE SANGUE
Autor: Demétrio Magnoli
Editora: Contexto
Quanto: R$ 49,90 (400 págs.)
Avaliação: regular
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