São Paulo, sábado, 26 de outubro de 2002

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WALTER SALLES

Notícias da estrada

Tão perto , tão longe. O Brasil vai mudar, e é duro só poder acompanhar um processo tão fascinante quanto esse a distância. Escrevo da estrada, na Patagônia argentina, no meio de uma filmagem. Toda tarde, assim que acaba a rodagem, corro para a internet e sorvo as notícias do dia.
Entendo melhor agora a frustração que Wim Wenders viveu em 1989. Quando caíram o muro e o céu sobre Berlim, Wenders estava filmando "Até o Fim do Mundo" na Austrália. Acompanhou durante anos todos os momentos de tensão na cidade em que residia, mas não presenciou o momento de ruptura, o instante que redefiniu toda a geopolítica do final do século 20.
É impressionante como a eleição brasileira ecoa na América Latina. Na nossa equipe de filmagem, há argentinos, chilenos, mexicanos, peruanos. Sempre me perguntam pelas últimas pesquisas, pelo posicionamento dos candidatos nos debates. O mesmo ocorre em hotéis, aeroportos, bares à beira da estrada. O interesse é bem maior do que o espaço que os jornais argentinos ou chilenos parecem reservar para a disputa entre Lula e Serra.
Até o depoimento de Regina Duarte também repercutiu por aqui. Tivemos discussões acaloradas sobre o marketing do medo. O tema me fez lembrar uma frase de "O Amigo Americano", na ótima adaptação cinematográfica escrita por Wenders a partir do romance de Patricia Highsmith: "Não há nada a temer, a não ser o próprio medo".

 

Mantenho contato com o Brasil através de filmes e documentários a que assisto em vídeo. Há pouco vi "Ônibus 174", dirigido por José Padilha e Felipe Lacerda, sobre a tragédia que deixou o Brasil a nu. O país inteiro estava dentro daquele ônibus. Todas as nossas misérias sintetizadas num único evento. O abandono e a desigualdade social, o despreparo policial, o racismo que tentamos esconder, a morte de inocentes. A lucidez ensandecida do homem armado, que gritava: "Isso aqui não é filme de ação, não!". O documentário, fundamentado em um sério trabalho de investigação, é imperdível. Ganhou, merecidamente, o prêmio do público e da crítica no Festival do Rio.
"Travessias", série de três documentários dirigidos por Dorrit Harazim, também me deixou com um nó na garganta. O relato de um dos últimos presos a deixarem o Carandiru é um depoimento único. Não há um pingo de sentimentalismo na relação entre o velho preso negro, encarcerado no Carandiru durante mais de 20 anos, e a mulher que não cansou de esperá-lo. Não há idealização ou postura romântica na análise daquilo que levou esse homem a sair do caminho. O documentário, coisa rara, consegue nos comover e gerar reflexão ao mesmo tempo.
Carandiru, ônibus 174, símbolos de um país que se quer mudar. O documentário brasileiro cola cada vez mais rapidamente a realidade.

 

Notícias da filmagem. Neve na primavera: estamos no Cerro Otto, na Patagônia. A meteorologia promete tempo bom. Uma tempestade de neve se abate sobre a montanha onde estamos filmando. Não se vê um metro à frente. O frio é intenso. Nada disso estava previsto, evidentemente. Filmamos mesmo assim.
Dois conceitos nos norteiam: em primeiro lugar, a idéia de que a improvisação deve ser uma constante. "Na pior das hipóteses, filma-se o roteiro" já dizia um cineasta das antigas. A segunda premissa é simples: a idéia de integrar as pessoas com as quais cruzamos na estrada para dentro do filme, procurando injetar vida na história que queremos contar.
Nem sempre dá certo: ontem, um jovem índio mapuche veio e se foi rapidamente da filmagem. "Nossos tempos são diferentes", disse a uma das pessoas da equipe. Tinha toda a razão.
Amanhã, atravessaremos o lago Frias, fronteira entre o Chile e a Argentina. Não há sinal de rádio ou de telefone nesse percurso. Quando chegarmos ao outro lado, já terá acabado a eleição no Brasil. Uma fronteira, e nada mais será como antes.


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