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WALTER SALLES
Notícias da estrada
Tão perto , tão longe. O
Brasil vai mudar, e é duro só
poder acompanhar um processo
tão fascinante quanto esse a distância. Escrevo da estrada, na Patagônia argentina, no meio de
uma filmagem. Toda tarde, assim
que acaba a rodagem, corro para
a internet e sorvo as notícias do
dia.
Entendo melhor agora a frustração que Wim Wenders viveu
em 1989. Quando caíram o muro
e o céu sobre Berlim, Wenders estava filmando "Até o Fim do
Mundo" na Austrália. Acompanhou durante anos todos os momentos de tensão na cidade em
que residia, mas não presenciou o
momento de ruptura, o instante
que redefiniu toda a geopolítica
do final do século 20.
É impressionante como a eleição brasileira ecoa na América
Latina. Na nossa equipe de filmagem, há argentinos, chilenos, mexicanos, peruanos. Sempre me
perguntam pelas últimas pesquisas, pelo posicionamento dos candidatos nos debates. O mesmo
ocorre em hotéis, aeroportos, bares à beira da estrada. O interesse
é bem maior do que o espaço que
os jornais argentinos ou chilenos
parecem reservar para a disputa
entre Lula e Serra.
Até o depoimento de Regina
Duarte também repercutiu por
aqui. Tivemos discussões acaloradas sobre o marketing do medo. O
tema me fez lembrar uma frase de
"O Amigo Americano", na ótima
adaptação cinematográfica escrita por Wenders a partir do romance de Patricia Highsmith:
"Não há nada a temer, a não ser o
próprio medo".
Mantenho contato com o Brasil
através de filmes e documentários
a que assisto em vídeo. Há pouco
vi "Ônibus 174", dirigido por José
Padilha e Felipe Lacerda, sobre a
tragédia que deixou o Brasil a nu.
O país inteiro estava dentro daquele ônibus. Todas as nossas misérias sintetizadas num único
evento. O abandono e a desigualdade social, o despreparo policial,
o racismo que tentamos esconder,
a morte de inocentes. A lucidez
ensandecida do homem armado,
que gritava: "Isso aqui não é filme
de ação, não!". O documentário,
fundamentado em um sério trabalho de investigação, é imperdível. Ganhou, merecidamente, o
prêmio do público e da crítica no
Festival do Rio.
"Travessias", série de três documentários dirigidos por Dorrit
Harazim, também me deixou
com um nó na garganta. O relato
de um dos últimos presos a deixarem o Carandiru é um depoimento único. Não há um pingo de sentimentalismo na relação entre o
velho preso negro, encarcerado no
Carandiru durante mais de 20
anos, e a mulher que não cansou
de esperá-lo. Não há idealização
ou postura romântica na análise
daquilo que levou esse homem a
sair do caminho. O documentário, coisa rara, consegue nos comover e gerar reflexão ao mesmo
tempo.
Carandiru, ônibus 174, símbolos de um país que se quer mudar.
O documentário brasileiro cola
cada vez mais rapidamente a realidade.
Notícias da filmagem. Neve na
primavera: estamos no Cerro Otto, na Patagônia. A meteorologia
promete tempo bom. Uma tempestade de neve se abate sobre a
montanha onde estamos filmando. Não se vê um metro à frente.
O frio é intenso. Nada disso estava previsto, evidentemente. Filmamos mesmo assim.
Dois conceitos nos norteiam: em
primeiro lugar, a idéia de que a
improvisação deve ser uma constante. "Na pior das hipóteses, filma-se o roteiro" já dizia um cineasta das antigas. A segunda
premissa é simples: a idéia de integrar as pessoas com as quais
cruzamos na estrada para dentro
do filme, procurando injetar vida
na história que queremos contar.
Nem sempre dá certo: ontem,
um jovem índio mapuche veio e
se foi rapidamente da filmagem.
"Nossos tempos são diferentes",
disse a uma das pessoas da equipe. Tinha toda a razão.
Amanhã, atravessaremos o lago
Frias, fronteira entre o Chile e a
Argentina. Não há sinal de rádio
ou de telefone nesse percurso.
Quando chegarmos ao outro lado, já terá acabado a eleição no
Brasil. Uma fronteira, e nada
mais será como antes.
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