UOL


São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

27ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SP

Premiado no Festival de Sundance, documentário sobre acusação de pedofilia de 1987 quer mostrar que "a verdade é vaga"

Família se desmorona na frente da câmera

LÚCIA VALENTIM RODRIGUES
EDITORA-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

O que começou como um documentário inocente sobre palhaços animadores de festas em Nova York se transformou numa história de desagregação familiar e acusações de pedofilia.
O cineasta Andrew Jarecki, 40, investigava sem grandes pretensões um grupo de palhaços: "Achei que poderia encontrar uma história interessante entre esse tipo tão peculiar de pessoas". Mas as coisas acabaram não caminhando exatamente para esse lado. Ele conheceu o palhaço nº 1 da cidade, David Friedman, e acabou sendo levado por sua experiência pessoal.
"Após trabalhar com ele por cinco meses, percebi que escondia um grande segredo. Quando comecei a entender o que era, não consegui me concentrar em mais nada. Era algo muito fascinante e irresistível de mergulhar. A parte boa dos segredos é que sempre há alguém querendo que eles deixem de ser segredos", diz Jarecki.
David é o filho mais velho da família Friedman, formada pelo chefe da casa (Arnold), mulher (Elaine) e três garotos (David, Seth e Jesse), parte da típica classe média de Long Island. Cresceram na frente de uma câmera portátil, sem grandes momentos brilhantes -Jarecki utilizou grande parte de horas de vídeos caseiros que retratavam o cotidiano e as brigas familiares. "Apesar de haver um caso criminal, o cerne do filme é mostrar a ruína de uma família norte-americana. Quis fazer o retrato dessa comunidade e ser justo com todo mundo", explica.
O crime em questão é a acusação de que Arnold e seu filho mais novo, Jesse, na época com 18 anos, teriam cometido estupro e sodomia com alguns garotos que tinham aulas de computação no porão da casa dos Friedmans.
Culpados ou não -o filme não tem a pretensão de elucidar o caso-, o que se vê na tela é a comoção pública criada na mídia e uma investigação que vai sendo levada de maneira duvidosa. "Não quis difundir uma doutrina nem vender um lado da história. O filme apenas mostra as evidências e deixa o público funcionar como júri do caso, já que o processo nunca chegou ao fim [ambos se declararam culpados para obter redução das penas]", afirma o diretor.
O caso é desconstruído pedaço a pedaço: crianças da época que depuseram contra os Friedmans contradizem suas próprias declarações, investigadores demonstram que conduziram as respostas, o advogado de defesa conta que Arnold assumiu ser pedófilo, e a cabeça do espectador é tomada por dúvidas e inverosimilhanças.
Nada se revela tão simples como o inicialmente imaginado. "Trabalhei na edição do filme por três anos e senti que tinha de deixar todas as partes contarem sua versão da história, sem apará-las. A consequência que se vê na tela é a exploração da verdade em si e o quanto essa verdade pode se revelar vaga e enganosa."
A estréia de Andrew Jarecki na direção foi premiada no Festival de Sundance deste ano com a estatueta de Grande Prêmio do Júri em documentário.
"Ninguém no longa é bom nem mau. Arnold é um bom pai, mas que fez coisas horríveis na vida. A polícia também comete erros na condução do caso, mas parece tentar fazer a coisa certa. Quando comecei a filmar, não estava certo do que iria encontrar, mas o que me absorveu nesse enredo foi a possibilidade de mostrar a complexidade humana e uma história cheia de compaixão."


Texto Anterior: 27ª Mostra Internacional de Cinema de SP: Mestre Yoshida
Próximo Texto: Frases
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.