São Paulo, terça-feira, 26 de outubro de 2004

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Ópera do malandro

"LAPA" E "NOTURNO DA LAPA", DE LUÍS MARTINS, SÃO RELANÇADAS

Há décadas fora do mercado, livros trazem retrato sombrio da vida noturna e dos mitos do bairro carioca

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

No carnaval de 1950, boa parte dos foliões cariocas cantava: "A Lapa/ Está voltando a ser a Lapa/ A Lapa/ Confirmando a tradição". O samba de Herivelto Martins e Benedito Lacerda, gravado por Francisco Alves, traduzia a saudade de uma Lapa do passado, a dos anos 1920 e 1930.
Dentre os vários escritores que retrataram esse período e construíram a mitologia do bairro -um enclave do centro do Rio, com história e lendas próprias- um se destacou: Luís Martins (1907-1981). Não que ele fosse, necessariamente, o melhor dos cronistas do bairro, mas foi quem dele fez seu principal assunto, cenário de seus textos e sua vida.
Dois livros de Martins estão sendo relançados esta semana pela editora José Olympio/ Biblioteca Nacional: "Lapa" (1936) e "Noturno da Lapa" (1964). É a segunda edição deles, que se tornaram, nas últimas décadas, preciosidades caçadas nos sebos cariocas.
O primeiro livro foi escrito no calor da hora, por um autor que trafegava pelos becos do bairro. Já o segundo são memórias dos tempos idos, mais amenas, produzidas em São Paulo, para onde Martins se mudou em 1938 exatamente por causa de "Lapa".
O livro foi lançado às vésperas do Estado Novo. E em 1937, quando Getúlio Vargas implantou sua ditadura, Martins produziu um segundo volume sobre a Lapa: "A Terra Come Tudo" -cujo relançamento ainda não está previsto. Ao retratar, com riqueza de detalhes, a prostituição no bairro, seus malandros e miseráveis, Martins ganhou da polícia política a alcunha de "comunista".
A saída foi fazer o que, para um carioca radical como ele, sempre fora impensável: mudar-se para São Paulo. Na capital paulista ele tinha a guarida da mulher com quem se relacionava desde 1933: a pintora Tarsila do Amaral.
Tendo uma diferença de idade de 21 anos (ela a mais do que ele), o casal viveu junto até 1952, mas o escritor -e também jornalista e crítico de arte- manteria para sempre São Paulo como sua sede, visitando o Rio pelo menos uma vez por ano.
"O livro ["Lapa'] mudou completamente a vida dele. Ele não esperava aquela repercussão. Tinha um futuro no Rio, era muito carioca. Podia ter voltado depois, mas criou outras raízes", conta Ana Luisa Martins, filha do escritor com Anna Maria, a segunda mulher de Martins. "O livro provocou tanto desgosto que ele chegou a renegá-lo", diz ela.
"Lapa" não é um painel feérico e alegre. Martins faz um retrato cáustico e sombrio da vida (noturna, especialmente) do bairro. Seu tema principal é a prostituição. Ou melhor, as prostitutas. Rosinha, Lia, Madô, Odette, Lina, Cecília, Honorina e anônimas têm suas tristezas e decadências acompanhadas por Paulo, o jovem narrador (com alguns traços autobiográficos).
O choque que "Lapa" provocou está na forma aberta com que Martins abordou o tema. Exemplo: "Era uma prostituta por instinto. Eu certeza de que ela cumpriria o seu destino. Sua mãe era pobre -não tinha pai- e desde muito cedo acostumara-se a pedir aos namorados as coisas de que precisava, em troca de pequenos favores que só não iam à cópula".
Perfis assim, somados a alguns palavrões e referências a coisas até então não-literárias como camisinha, foram significativas novidades em 1936. Mas, na verdade, "a Lapa de Luís Martins era mais da poesia e da literatura que da malandragem e da valentia", como ressalta Ruy Castro na ótima introdução ao livro.
Seus companheiros de boemia eram jornalistas, artistas e intelectuais como Odylo Costa, filho, Francisco de Assis Barbosa, Jorge Amado, Rubem Braga, Carlos Lacerda (ainda comunista) e Moacir Werneck de Castro.
"Luís foi um boêmio que se tornou erudito. Um paulista que nunca deixou de ser carioca. Volta e meia, ele reaparecia na Lapa, mas se decepcionava", relembra Moacir Werneck, 89.
A Lapa dos valentões (Madame Satã, Camisa Preta, Brancura) e das cafetinas e prostitutas (Alice Cavalo de Pau, as polacas e francesas) também sofreu um golpe nos anos 40. O Estado Novo, representado pelo chefe de polícia Alcides Gonçalves Etchegoyen, fechou cabarés, bordéis, casas de jogo.
Com a repressão, o bairro foi perdendo seus músicos (Orlando Silva, Silvio Caldas, Aracy de Almeida, Wilson Batista), sua freqüência. Ficou a nostalgia de Luís Martins e uma rica mitologia.


LAPA/NOTURNO DA LAPA. Autor: Luís Martins. Editora: José Olympio/ Biblioteca Nacional. Quanto: R$ 55 (caixa com os dois volumes e um CD com seis músicas sobre a Lapa)


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