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Ópera do malandro
"LAPA" E "NOTURNO DA LAPA", DE LUÍS MARTINS, SÃO RELANÇADAS
Há décadas fora do mercado, livros trazem retrato sombrio da vida noturna e dos mitos do bairro carioca
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
No carnaval de 1950, boa parte
dos foliões cariocas cantava: "A
Lapa/ Está voltando a ser a Lapa/ A
Lapa/ Confirmando a tradição". O
samba de Herivelto Martins e Benedito Lacerda, gravado por Francisco Alves, traduzia a saudade de
uma Lapa do passado, a dos anos
1920 e 1930.
Dentre os vários escritores que
retrataram esse período e construíram a mitologia do bairro
-um enclave do centro do Rio,
com história e lendas próprias-
um se destacou: Luís Martins
(1907-1981). Não que ele fosse, necessariamente, o melhor dos cronistas do bairro, mas foi quem dele fez seu principal assunto, cenário de seus textos e sua vida.
Dois livros de Martins estão sendo relançados esta semana pela
editora José Olympio/ Biblioteca
Nacional: "Lapa" (1936) e "Noturno da Lapa" (1964). É a segunda
edição deles, que se tornaram, nas
últimas décadas, preciosidades caçadas nos sebos cariocas.
O primeiro livro foi escrito no
calor da hora, por um autor que
trafegava pelos becos do bairro. Já
o segundo são memórias dos tempos idos, mais amenas, produzidas em São Paulo, para onde Martins se mudou em 1938 exatamente por causa de "Lapa".
O livro foi lançado às vésperas
do Estado Novo. E em 1937, quando Getúlio Vargas implantou sua
ditadura, Martins produziu um
segundo volume sobre a Lapa: "A
Terra Come Tudo" -cujo relançamento ainda não está previsto.
Ao retratar, com riqueza de detalhes, a prostituição no bairro, seus
malandros e miseráveis, Martins
ganhou da polícia política a alcunha de "comunista".
A saída foi fazer o que, para um
carioca radical como ele, sempre
fora impensável: mudar-se para
São Paulo. Na capital paulista ele
tinha a guarida da mulher com
quem se relacionava desde 1933: a
pintora Tarsila do Amaral.
Tendo uma diferença de idade
de 21 anos (ela a mais do que ele), o
casal viveu junto até 1952, mas o
escritor -e também jornalista e
crítico de arte- manteria para
sempre São Paulo como sua sede,
visitando o Rio pelo menos uma
vez por ano.
"O livro ["Lapa'] mudou completamente a vida dele. Ele não esperava aquela repercussão. Tinha
um futuro no Rio, era muito carioca. Podia ter voltado depois, mas
criou outras raízes", conta Ana
Luisa Martins, filha do escritor
com Anna Maria, a segunda mulher de Martins. "O livro provocou
tanto desgosto que ele chegou a renegá-lo", diz ela.
"Lapa" não é um painel feérico e
alegre. Martins faz um retrato
cáustico e sombrio da vida (noturna, especialmente) do bairro. Seu
tema principal é a prostituição. Ou
melhor, as prostitutas. Rosinha,
Lia, Madô, Odette, Lina, Cecília,
Honorina e anônimas têm suas
tristezas e decadências acompanhadas por Paulo, o jovem narrador (com alguns traços autobiográficos).
O choque que "Lapa" provocou
está na forma aberta com que
Martins abordou o tema. Exemplo: "Era uma prostituta por instinto. Eu certeza de que ela cumpriria o seu destino. Sua mãe era
pobre -não tinha pai- e desde
muito cedo acostumara-se a pedir
aos namorados as coisas de que
precisava, em troca de pequenos
favores que só não iam à cópula".
Perfis assim, somados a alguns
palavrões e referências a coisas até
então não-literárias como camisinha, foram significativas novidades em 1936. Mas, na verdade, "a
Lapa de Luís Martins era mais da
poesia e da literatura que da malandragem e da valentia", como
ressalta Ruy Castro na ótima introdução ao livro.
Seus companheiros de boemia
eram jornalistas, artistas e intelectuais como Odylo Costa, filho,
Francisco de Assis Barbosa, Jorge
Amado, Rubem Braga, Carlos Lacerda (ainda comunista) e Moacir
Werneck de Castro.
"Luís foi um boêmio que se tornou erudito. Um paulista que
nunca deixou de ser carioca. Volta
e meia, ele reaparecia na Lapa,
mas se decepcionava", relembra
Moacir Werneck, 89.
A Lapa dos valentões (Madame
Satã, Camisa Preta, Brancura) e
das cafetinas e prostitutas (Alice
Cavalo de Pau, as polacas e francesas) também sofreu um golpe nos
anos 40. O Estado Novo, representado pelo chefe de polícia Alcides
Gonçalves Etchegoyen, fechou cabarés, bordéis, casas de jogo.
Com a repressão, o bairro foi
perdendo seus músicos (Orlando
Silva, Silvio Caldas, Aracy de Almeida, Wilson Batista), sua freqüência. Ficou a nostalgia de Luís
Martins e uma rica mitologia.
LAPA/NOTURNO DA LAPA. Autor: Luís
Martins. Editora: José Olympio/ Biblioteca
Nacional. Quanto: R$ 55 (caixa com os
dois volumes e um CD com seis músicas
sobre a Lapa)
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